terça-feira, 16 de abril de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Quem semeia ventos colhe tempestades, assim diz o provérbio e é o que parece estar a acontecer com o regime que nos oprime e, num certo plano, nos traz infelizes. Infelicidade que, vendo bem, é afinal um misto de sentimentos contraditórios, pois no fundo, isto é, no âmago da vida privada que levamos eu, no que particularmente me diz respeito e não serei a única pessoa a passar por isso, tenho a sensação de nunca me ter sentido tão feliz, tão em serena harmonia com o decorrer do dia a dia em que tantos motivos de alegria vou encontrando. Não deixando no entanto de considerar uma tristeza que à nossa volta está o país que temos, este cenário de vexame e repressão que se abate sobre gente simples e honrada, vítimas da loucura daqueles que se vêem donos da verdade e que por isso se autorizam na missão de zelar para que tudo seja de acordo com os seus ditames e interesses. E tal acarreta a mágoa e o mal estar de termos que viver num mundo assim, calando a revolta e silenciando as denúncias das injustiças, agindo como se nada de estranho se passasse e ninguém estivesse privado da sua própria vida por um simples motivo de opinião que a mim muito repugna chamar de delito, como os malvados fazem. É aí ou por aí que a dúvida se nos injecta na consciência e nos faz perceber a inquietação de não nos sentirmos bem. “-Pois bem, mas o que fizestes vós para acabar com isso?” É a pergunta que o futuro, um dia, nos poderá atirar à cara e isso dói no peito do presente, é a infelicidade a que esta ditadura implacável nos sujeita. Sem qualquer laivo de hipocrisia é esta uma moinha que passa, ela volta, aqui e ali, mas acaba sempre por passar na medida em pessoalmente sou dada a concluir que, naquilo que nos toca, até podemos dizer que temos feito muito quer para que assim não fosse, não tivesse necessariamente que ser, quer para preparar o quando assim vier a deixar de ser. É claro que não andamos de armas na mão e estou certa que nenhum de nós sequer chega à actividade subversiva de um militante oposicionista e ainda menos à dos clandestinos que lutam abertamente contra a lógica e a existência do Estado Novo que pretendem pura e simplesmente remover para as páginas da História. Se exceptuar as ocasiões em que alguns tiveram a atitude corajosa de dar cobertura a uma ou outra fuga às atrocidades da PIDE, quanto muito teremos no curriculum a subscrição de anódinos abaixo-assinados de protesto ou a favor de alguém ou alguma coisa e pouco mais, para lá de contributos financeiros que praticamente todos oferecem às famílias dos presos políticos. No entanto, temos que admitir que, pelo menos até agora, não têm sido esses processos que deram a mais leve mostra de serem capazes de inverter a situação e aquilo que temos visto é que Salazar e o salazarismo a todos têm resistido e a todos têm sabido dar uma réplica demolidora. Mas eu não tenho a menor dúvida que à medida que a população vá sendo instruída e comece a viver melhor, aí sim, o reino destas gentes estará finalmente por um fio. É com toda a convicção que por isso afirmo que aquilo que temos feito nesta nossa comunidade em termos de proporcionarmos condições salariais e de vida condigna ao povo que para nós trabalha, bem como ao nível de proporcionarmos educação livre e gratuita e de excelente recorte no que lhes é ministrado e com a exigência que tudo é feito, devo dizer, sem qualquer vaidade, tudo isso acabará por ser o que melhor poderíamos ter feito para procurarmos alterar esta sociedade injusta que nos envolve e em que acabamos por estar inseridos e que é o mundo que parece estar agora a recolher as tempestades que tem semeado. A informação que vai saindo nos jornais e menos ainda na rádio ou na televisão, é escassa e, como seria de esperar, não só não é detalhada como, em boa parte, serve para ocultar os problemas de fundo e que são as causas daquilo a que chegámos. Mas desde a Primavera passada que se sabe de revoltas mais ou menos assíduas em Angola e que originaram vários massacres de colonos brancos e até de africanos que, de acordo com os executantes, com eles colaboram. Ao que parece, há vastas regiões do norte submetidas ao flagelo e há quem diga que se trata de uma verdadeira carnificina, pois a resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar e logo foram mobilizadas tropas para ali se instalarem, segundo a palavra de ordem de Salazar, com força. Vamos a ver o que sucederá daqui para a frente. Portugal que desde a independência da Índia ficou entregue a si próprio naquele vasto sub-continente e tão bem soube movimentar-se nas instâncias internacionais para adiar o mais possível o inevitável que seria a anexação dos territórios que aí administra por parte da União Indiana, viu rebentar-lhe na jóia do império uma revolta armada com que não contava, mas veio a mostrar ao mundo que os anseios e expectativas de independência que têm subtraído vastos territórios de África aos poderes coloniais, também penetraram os desejos de populações angolanas, com isso perdendo sentido a argumentação relativa a uma administração colonial diferente e aceite pelos naturais, com que a diplomacia salazarista tem conseguido iludir as expressas intenções de Nheru de expulsar os últimos vestígios do colonialismo no seu país. Ora tenho para mim que terá sido aquele levantamento em Angola o pretexto de que o líder indiano estava à espera para fazer avançar as suas tropas e forçar o regime salazarista que, quanto a mim, não poderá ser de Portugal que aí falamos, antes do regime salazarista que dessa forma se viu obrigado a passar pela humilhação de uma derrota militar e à simples debandada dos seus representantes e alguns estratos da população e tudo isto, ao que se ouve dizer por aí, depois daquele velho de Santa Comba ter dado a ordem às nossas tropas para que não se rendessem. Foi o que o bastou para que alguns civis em conluio com militares, em minha opinião muito provavelmente de forma precipitada, isto avaliando pelo desfecho que teve, pensassem ter chegado a hora de fraqueza do regime e portanto a melhor oportunidade para derrubarem a situação pela força. Desta vez as lealdades ainda falaram mais alto e aquilo que se esperaria vir a desenvolver-se a partir do controle de um quartel em Beja ficou logo ali morto à nascença, com feridos entre os assaltantes que na maioria foram presos. Cá para mim, vem aí uma vaga de repressão ainda maior do que as chumbadas destes últimos anos, com particular intensidade a partir da candidatura do General Humberto Delgado à presidência da república que, apesar de estar no exílio, foi já acusado de estar por trás destas manobras subversivas. Mas também não deixo de vaticinar que estendendo-se a guerra a outras províncias ultramarinas, começará aí então a verdadeira contagem decrescente para a queda de Salazar e deste regime cruel e injusto. Tenho muitas dúvidas que o país seja capaz de enfrentar um conflito com tais dimensões, em diversas frentes e mais tarde ou mais cedo do que aquilo que muitos de nós esperamos, a situação tornar-se-á de tal modo insustentável que lá chegará o dia em que uma revolta sairá vitoriosa. Se até aqui tenho sempre manifestado as maiores dúvidas e reservas em face da possibilidade de o povo português conseguir desalojar Salazar do poder, agora acredito que esse dia pode estar muito mais perto do que os mais optimistas julgam.

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