domingo, 28 de abril de 2013



RETRATOS – III




Pintura de Luís Delgado (óleo sobre platex)


DESEMPREGO

Voltaram os distúrbios do sono.
Vai-se para a cama quando os olhos já pesam e os bocejos se soltam e, após o indispensável balanço do dia e o reavivar de alguma ocupação agendada para o tempo seguinte, o sono acaba por chegar aparentemente natural já que com certeza legítimo.
Mas algo existe, que de natural nada tem pois que subitamente se interrompe o sono às horas mais surpreendentes.
Indeciso entre considerar já ser muito tarde ou ser ainda muito cedo, fica-se ali quieto esperando que o dormir regresse. Os olhos mantêm-se fechados como que ordenando ao corpo que readormeça.
Ouvem-se as horas na torre da igreja.
Uma única badalada.
Ora bolas que meia será?
Às vezes espera-se que a torre nos diga o acerto das horas completas, outras não há pachorra para esperar mais meia hora para a confidência. Acende-se então a luz do candeeiro e espreita-se o despertador: 05,30 horas.
Uma volta na cama e a tentativa de que o calor do leito iluda a biologia e se deixe de novo seduzir pela lembrança do sono recente e contorne a despertina. É, recorrentemente, uma expectativa frustrada, o despertar está decidido e não se acobarda.
No outro dia eram 04,50, noutro 06,15, noutro ainda 05,10. Às vezes ainda se fica um pouco deitado, de olhos abertos, tricotando pensamentos embalados no respirar pesado da companheira que ao lado dorme ou evade-se a atenção para o exterior catando ruídos na noite.
Às vezes ouve-se uma coruja já que por aqui há algumas.
O tempo passa lento em direcção à manhã e ao corpo impõe-se o levantar. De mansinho, como convém atendendo à hora e para não incomodar o resto da família que dorme sem dar por nada. Levantam-se as persianas devagar oferecendo-se às plantas cá de casa o clarear da manhã.
Na cozinha se bebe água e se fuma um cigarro na varanda das traseiras olhando, até  ao encadeio, o néon amarelo dos candeeiros da praceta até que a aurora surge num ritual sempre novo e os ruídos do despertar se começam a ouvir nas casas ao lado.
Durante muito tempo foi assim.
Só eu na noite aguardando a chegada do dia.
Agora já não é pois que, de vez em quando, identifico outros fumos, de outros cigarros, que se elevam das janelas.
Não sendo aberrante é, contudo, de certa forma estranho.
O tempo habitualmente consignado ao descanso, consumindo-se com os cigarros que se fumam em silêncio na madrugada.
Senti necessidade de me informar do que por ali se passava e lá fui sabendo que o desemprego recrutara mais reforços ali no quarteirão.
Pronto, estava explicado.
E assim, também, compreendido o porquê desta solidão partilhada acentuar ainda mais o desconforto e a sensação de abandono despropositado e, como tal, óbvia e forçosamente inaceitável.
Temos de dar uma volta a isto.
O presente o exige, o futuro o merece. 

Manuel João Croca


8 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Tema muito actual, que nos transporta para o desassossego que nos querem impor,

até ver, com sucesso! :(

O retrato omite os não fumadores. O que farão eles? Posso dar algumas boas alternativas... :)

Abraço,
António

Amélia Oliveira disse...

Retrato perturbante de um tempo que é o nosso, este, agora! Mas que se há-de tornar passado, talvez em breve, espera-se que em breve... porque o futuro não só o merece, como também o exige! 'Futuremos' - verbo teu :)
´
Um bom domingo ventoso!

Amélia

carlos rodrigues disse...


Caríssimo,
Como é sabido o problema não é o desemprego, mas sim as finanças. O homem não nasceu para trabalhar. E claro que se não há trabalho não se pode falar em desemprego... Talvez se tenha que começar a falar de um subsídio (algum tipo de apoio) para os que trabalham, quando necessitados. Mas, seguramente (palavra que gostaria de poder evitar, mas agora aqui, à falta de melhor, lá vai ela), há que resolver o problema das finanças. Resolvidos os problemas das finanças, as insónias são substituídas pela vigília, ou pelo despertar, como se diz na peça. O amanhecer ganha aí uma nova dimensão e o amarelo das luzes dos candeeiros da rua passam a ser da cor do ouro que não encandeia. A "soma" de tudo, como se diz nos hinos védicos, é a iluminação da via pública. Portanto(!), agora é preciso centrar a nossa atenção na boa gestão das finanças, ainda que sejamos ricos (que tenhamos muitas propriedades), e aqui principalmente. Se for (mesmo) preciso corremos com o Gaspar, que não o do presépio. E Abraço.

Luís F. de A. Gomes disse...

É, companheiro, até já parece que somos soldados, preocupados com o decurso do dia seguinte o que até nem é estranho, se atendermos que na verdade somos o alvo de uma guerra que a ganância organizada a nível mundial está a fazer contra nós e, por enquanto, a ganhar e isso enquanto formos nós a ficarmos sem sono. Comecemos pois por dar o passo lógico, para que o rumo deste conflito criminoso se inverta e a vitória venha a ser nossa, o mesmo é dizer, da dignidade da pessoa humana.

MJC disse...

António, viva!

De madrugada e às escuras são mais difíceis de detectar os não fumadores. Há menos indícios mas, se calhar, estão por lá alguns.
Não acredito que só fiquem desempregadas pessoas que fumam...
Quanto às alternativas diz lá qu'isto um homem não está sempre a fumar.

Abraço (e não te esqueças de dia 19).
Manuel João
.(

MJC disse...

Amélia, viva!

Futuremos pois!
É um óptimo propósito até porque a malta não se rende.

Um abraço.

Manuel João

MJC disse...

Viva Luís,

o homem não nasceu para trabalhar embora o trabalho tenha de ser feito. E há muito por e para fazer. Só que a alguns obrigam-nos a trabalhar 12,13, 14 horas (às vezes mais) por dia, enquanto outros ... é o que se sabe.
E depois há a questão das finanças pois claro! Há que cumprir o primeiro "S" que é o do sustento e todos os dias vamos ouvindo histórias de arrepiar que de princípio se estranham mas depois se entranham. Eu acho que é mesmo preciso correr com o Gaspar (que pode e deve levar o resto da banda). É claro que o do presépio nunca, o outro do excel.

Abraço.

Manuel João

MJC disse...

Luis Gomes, viva!

Se fosse só o problema do sono acredito que a coisa até estava repartida já que, admito que muitos dos "mandantes e tiranetes" também o não conseguirão disfrutar tranquilamente.
Os problemas são outros.
O desemprego é um dos grandes e muito sério mas outros igualmente aviltantes para a dignidade humana se agravam permanentemente e talvez venham a merecer abordagem em futuros "Retratos".

Abraço,

Manuel João