terça-feira, 30 de abril de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Os anos passam mas, pelo menos até à idade em que estou, nas capacidades físicas, especialmente essas que sinto no meu corpo, as intelectuais para aqui não contam, pois estas parecem avolumar-se pelo decorrer da idade, na força que ainda possuo no auge dos meus quarenta e sete aniversários, diria que daquela passagem damos conta no rosto dos outros, a começar, para aqueles que têm filhos, nos daqueles que crescem à nossa volta e se vão modificando e mais que naquele em que nos vamos mirando por todas as renovações do alvorecer, é nesses espelhos que vamos percebendo que as translações são inexoráveis e deixam marcas, nas madeixas de neve que nos começam a salpicar os cabelos, nas gelhas teimosas que persistem na testa sem que o sobrolho se franza e que no dia a dia não damos conta, da mesma forma que sendo saudáveis, continuamos a erguermo-nos sem qualquer dificuldade todas as manhãs, a recuperarmos de um esforço pela clemência de uma única noite de repouso e com isso vamos andando sem que estejamos preocupados com a sucessão dos entardeceres que nos vão fazendo entrar na tarde das nossas próprias vidas. As sociedades têm mecanismos que, não sendo propriamente dito com tal finalidade, de alguma maneira também servem para nos chamar a atenção sobre a inevitável passagem do tempo a que nos temos que ir adaptando, isto é, que para nós implicam mudanças a que temos que procurar corresponder para interpretarmos os diversos papéis que o nosso percurso vital nos convida a desempenhar. É isso que é a escola, por exemplo, ou para os rapazes o serviço militar e para todos o lugar de aprendiz, seja qual for a função ou ofício. Por tais marcos vamos sabendo que passámos de meninos e meninas a rapazes e raparigas, mais tarde a gente crescida e adulta, mas nem por isso vamos dando conta da contabilidade das anuidades e só quando chocamos de frente com novas etapas decisivas ou um ou outro evento extraordinário mas com implicações directas nessa percepção, só aí compreendemos que a vida se foi cumprindo e com isso aproximando-nos dos limites que se esperam que venhamos a ter. Ainda há pouco mais de dois anos, pela ocasião do vigésimo aniversário da nossa comunidade, tive a oportunidade de me confrontar com esse fenómeno, vinte anos passados, a consciência da distância a que ficou a juventude com que aqui chegámos, mas só agora tenho a sensação de como isso se traduz no concreto das nossas vidas. A verdade é que até aqui, todas as conversas, todos os debates, todas as decisões que temos tomado ao longo desta aventura, têm girado sempre à volta de novos projectos que, de algum modo, têm a ver com a expansão das nossas actividades e, para falar com toda a franqueza, tenho de reconhecer que para mim foi um choque o ter-me visto, assim um tanto de repente, colocada perante a necessidade de pensar na reforma e como nos poderemos organizar para lhe encontrar uma resposta adequada, o mesmo é dizer, habilitarmo-nos para conseguirmos garantir um rendimento o mais próximo possível daquele que usufruímos no presente para todos aqueles que cheguem à idade da aposentação. Pois tem sido isso que nos tem ocupado nestes últimos meses desde que o senhor Abel nos alertou para a sua idade e a vontade de se retirar para ainda poder gozar com a sua Noémia o prazer de uma vida descansada. O homem completou há pouco as sessenta e duas primaveras, uma mais que as da sua mulher e, como nos disse ontem, ao jantar, sente que a vitalidade já não é a mesma para a responsabilidade diária do trabalho e claro que gostaria de dispor do direito que todos reconhecemos como legítimo e efectivo de uma velhice serena e sem ter que estar subjugado à demanda do pão nosso de cada dia, para usar as suas próprias palavras. E é isso, com efeito, a reforma trata-se do mais elementar direito daqueles que trabucam tantas dezenas de anos consecutivos e foi por isso que depois de muitos estudos, trocas de impressões e contas, muitíssimas contas, decidimos afectar a produção do sobreiral à constituição de um fundo de rendimento que, através dos lucros anuais gerados, terá como pagar as aposentações de todos. A partir daqui todos nós passaremos a ver descontados uns meros cinco por cento dos nossos vencimentos que irão confluir para esse fundo de pensões que será gerido pelo Gustavo e que daqui a dois anos passará a pagar o retiro daquele casal, uma vez que ficou estabelecido que os homens deixarão de laborar aos sessenta e cinco anos e as mulheres aos sessenta. Em ambos os casos poderão abreviar em cinco anos a licença definitiva, sofrendo no entanto uma penalização de vinte por cento sobre o salário que teriam no fim do termo certo. Em qualquer caso de invalidez, seja por acidente ou doença, o beneficiário receberá o vencimento por inteiro. Parece-me que decidimos com justiça. E eu daqui a treze anos, mais precisamente em setenta e seis, se lá chegar, alcançarei então o meu direito ao merecido descanso.

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