“-Meus amigos!
Estamos aqui com o mais elevado sentido de serviço cívico e com todo o orgulho de quem sabe estar a cumprir, ainda que numa pequena parte, numa pequeníssima e modestíssima parte, e também estamos aqui, dizia, a cumprir a nobre missão de velarmos para que este dia seja um exemplo do quanto os portugueses estão gratos pela democracia e aptos para em ela e de acordo com ela viverem e aquilo que se vai passar, a expressão da vontade que os nossos concidadãos vão ditar pelo voto, tenha a garantia de que tudo decorrerá de forma pacífica e necessariamente educada, dentro das regras da sã convivência e da natural concorrência entre as partes em disputa e dos requisitos que permitam a todos e a qualquer um, na solidão e completo recato da sua escolha individual a que só a sua consciência preside, indicar qual é a sua preferência para o representar na assembleia que terá como propósito a feitura e aprovação de uma constituição que moldará o género de sociedade que pretendemos ou venhamos a pretender para Portugal. É bom ter presente que é a primeira vez que, em muitas décadas, nos é dada a oportunidade de livremente elegermos aqueles que achamos melhores para os palcos das decisões. Apesar de toda a agitação e algazarra que tem ocupado as ruas e os mais diversos locais, incluindo os lares e os postos de trabalho, apesar da confusão que uma miríade de partidos e movimentos políticos só por si inevitavelmente gera, apesar de tudo isto, a campanha eleitoral decorreu em paz e a nenhum dos concorrentes foi diminuída ou de alguma forma constrangida a possibilidade de apresentar os seus pontos de vista e propostas e com isso fazerem os seus apelos ao voto e de conseguirem o máximo de representatividade que, depois, ao povo lhe pareça conveniente atribuir. Por palavras mais simples e concisas, podemos com satisfação afirmar que tudo decorreu em plena liberdade e chegou ao dia de hoje com alegria e o saldo de algo cumprido a preceito. Provavelmente, se aprofundarmos com rigor as páginas da nossa História, foi a primeira vez que isso sucedeu entre nós, pois é a primeira vez que homens e mulheres, qualquer cidadão maior de idade, vai poder pronunciar-se sem receio nem qualquer condicionalismo sobre o que querem para os destinos políticos do país. E ninguém entre os que aqui estão, tendo conhecido apenas o Estado Novo, tinha antes assistido a uma coisa destas. Não tenhamos qualquer dúvida, muito menos temamos que nos acusem de vaidade ou nacionalismo retrógrado por o dizer, é uma grande lição que nós, portugueses, damos ao mundo. Mas é igualmente e se calhar com maior grau de importância, uma enorme fonte de ensinamentos que devemos tirar para nós, mais não fosse, pela prova que faz de como também nós somos capazes de compreender e assimilar as normas democráticas e de viver em conformidade com elas. É pois uma enorme honra para todos os que aqui estão hoje, com o papel de zelarem para que a afluência às urnas que vão abrir daqui a pouco, aconteça com toda a civilidade, com a garantia de que todos possam escolher sem o mais leve estorvo e a mínima interferência de quem ou o que quer que seja. Ora essa honra que nos distingue implica igual e obrigatoriamente a grande responsabilidade de nada fazer para que tais objectivos sofram a mais insignificante das beliscaduras. Assim, ao mesmo tempo que desde já lhes quero agradecer a disponibilidade e o empenho para estarem aqui e de lhes mostrar ainda a minha gratidão pelo facto de me terem escolhido para presidir a estas mesas eleitorais em que os habitantes do Vale da Esperança vão depositar os seus votos, ao mesmo tempo que lhes transmito esses agradecimentos, exorto-os a cumprirem este vosso acto histórico com todo o brio e competência de que sejam capazes, não permitindo que a indispensável imparcialidade seja ofuscada pelos gostos e as preferências pessoais. Lá fora, como todos pudemos testemunhar, há bichas à entrada do edifício da escola e dentro de momentos vamos abrir as portas para que o escrutínio comece. Todos têm conhecimento da sua função individual e ontem aferimos e ensaiámos o que cada um tem a fazer. Façamos pois desta data histórica um exemplo de democracia para que um dia mais tarde, possamos sentir o júbilo de quem deu o seu contributo efectivo para aquela e, em vez de o fazer pela força, o levou a efeito em paz e sob a forma de festa.
Vamos então dar início a este que será um dia singularíssimo que haveremos de recordar para todo o resto das nossas vidas e que os mais novos, entre os presentes, haverão de contar como heróis aos seus queridos netos.”
Foi este o discurso que na última sexta-feira, vinte e cinco de Abril, antes de abrir as mesas eleitorais, fiz para todos aqueles que comigo colaboraram para que a votação tivesse lugar aqui, na comunidade. É uma sorte que o Centro de Estudos de História Local que funciona a partir de uma parceria entre a escola e a associação cultural, tenha querido registar este acontecimento – na verdade é de um facto histórico que se trata – e ainda maior sorte temos por dispormos de tecnologias que em muito facilitam tais registos, pois só assim me foi possível recuperar as palavras que, de improviso, alinhavei e de outro modo se teriam perdido, não fosse o terem ficado gravadas em cassete, da mesma maneira que um número a todos os títulos significativo de imagens foram recolhidas em filme, no formato super oito, não só com depoimentos a respeito de como foi organizado todo o processo, como ainda com múltiplas e diversificadas entrevistas a diversos populares que em massa votaram e que em grande número de casos, se sentiram distinguidos por puderem deixar os seus testemunhos e opiniões sobre o evento mais relevante para o país desde o dia em que os militares derrubaram a ditadura. Aqui, no Vale da Esperança, com a excepção de um senhor que faleceu depois de se ter inscrito nos cadernos eleitorais e, por motivos óbvios, ali não foi, por enquanto, abatido, dos restantes eleitores não houve quem tenha faltado à chamada e, apesar de alguns votos em branco, todos se pronunciaram e disseram de sua justiça no mais completo sigilo das câmaras de voto. Pelo que se viu no telejornal, o resto do país acorreu à votação com um índice de participação que esmagou totalmente os prognósticos mais optimistas. Vestida de Domingo festivo, a população portuguesa afirmou peremptoriamente o apego pelas liberdades democráticas, como, no outro coelho da mesma cajadada, deixou bem claro perante todo e qualquer revanchismo que o regresso ao fascismo é para nunca mais. Lindo de se ver, maravilhoso de se viver, por nós e por todos aqueles que deram as suas vidas para que agora o possamos gozar.
Quanto aos resultados é que, como não poderia deixar de ser, há uns mais contentes que outros. Compreendo, por um lado o lamento e, por outro, o desalento do senhor Abel quanto à fraca expressão que os comunistas conseguiram nos boletins de voto. Esperava uma contabilidade mais significativa e a avaliar pela presença e visibilidade que têm nos órgãos de comunicação social, dir-se-ia que tudo apontaria para que assim sucedesse. Mas quanto a mim não espanta, se tivermos em consideração que a maioria do país é rural e católico, para além de as pessoas terem intuitivamente a noção de quão fundamental é a ordem – que não deriva necessariamente do autoritarismo ou, ao contrário, não implica obrigatoriamente aquele – e a segurança e de as propostas de uma alteração radical dos pilares básicos da sociedade lhes parecerem demasiado arriscadas. É pois natural que as suas escolhas recaiam naqueles que lhes parecem mais moderados. Quanto a mim, só fico admirada é como a extrema-esquerda conseguiu meter um deputado. Seja como for, no dia vinte e cinco, mais uma vez no dia vinte e cinco de Abril, ganhou a democracia, ganharam os portugueses.
Sem comentários:
Enviar um comentário