terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA




4º. CADERNO

Assim passaram todos estes anos desde que nos estabelecemos aqui e, dentro deles, muitos outros a partir do dia em que me vim a descobrir docente por via das circunstâncias que as nossas vontades e persistência foram gerando. Há sempre nostalgia quando encerramos um ciclo na nossa vida, tal qual eu estou fazendo agora que sei ter dado a minha última lição mas, sem qualquer toque de vaidade, sinto que há igualmente a alegria da consciência do dever cumprido e, embora mais leve, sendo nós simples humanos, também a antecipação da satisfação por muito simplesmente podermos dormir até tarde e não termos que nos deitar antes do que temos em mão esteja resolvido. E mentiria se escondesse a sensação de que estas se sobrepõem àquela. Não tenho pois a tristeza de abandonar o que de mim fez parte por tanto tempo e posso dizer que parto com alegria para esta nova fase que se abre cheia de visões de realização de pequenos sonhos que permanecem por concretizar. Teoricamente ainda teria que leccionar ao longo do próximo ano lectivo o que poderia muito bem ser essa a minha derradeira experiência enquanto professora. No entanto nunca antes usufruíra da possibilidade da minha licença sabática a que, de acordo com as regras da casa, poderia ter acesso e de que abdiquei mesmo enquanto preparei o doutoramento e na medida em que a minha aposentação em nada põe em risco a continuidade da disciplina em que já estou devidamente substituída, decidi apresentar perante o Conselho Escolar a possibilidade de transformar essa concessão que, como é lógico, só se justifica para qualquer outro trabalho de especial relevo e importância, seja para o conhecimento, seja para alguma mais-valia de interesse para a comunidade ou a sociedade, em geral, numa forma de aliviar em uma anuidade a entrada na situação da reforma e como, uma vez apreciada, a minha pretensão veio deferida, apesar de tecnicamente ainda estar no activo, estou assim na condição de quem, na prática, pode agir como alguém que deixou de necessitar de trabalhar para viver. No fim de setenta e seis perfarei trinta e cinco anos de serviço continuado e como tal, com uma penalização de vinte por cento em relação ao meu último salário, pois faço-o antes dos sessenta e cinco anos, poderei reformar-me por limite de idade. Ora como as nossas poupanças e bens acumulados seriam suficientes para vivermos tranquilos o resto dos nossos dias, seria uma teimosia continuar a ocupar um lugar em que seguramente o sangue novo pode colocar outra vitalidade. Bem sei que a sabedoria se avoluma no decurso da existência e que só por isso um mestre mais velho pode ser uma reserva inestimável de saberes e pensamentos, mas há toda uma energia física que o palco de uma aula requer e essa vai ao invés daqueles aspectos e seria uma palermice pretender que a partir de uma certa altura mantemos a mesma vivacidade de outros ontens e não ser capaz de reconhecer quando os outros podem conseguir melhor que nós e é chegada a ocasião para nos retirarmos. E depois fica sempre em aberto a eventualidade de uma colaboração ou de colaborações pontuais a que não me subtrairei se realmente valerem a pena e isto sem prejuízo de preferir repousar, pelo menos nos meses mais próximos. Com toda a sinceridade, penso ser inteiramente merecido que uma pessoa depois de uma larga fatia da sua passagem por este mundo ser levada com as agruras e preocupações da labuta diária, possa gozar por um bom número de primaveras esse esplendor com que a lezíria se pinta em Abril e Maio. Havendo saúde, é esse o primeiro prémio que a sociedade lhe oferece para que possa usar esses dias com os encantos do quotidiano que antes não tinha possibilidades para apreciar. Amanhã partiremos para Paris, onde o Carlos Manuel nos esperará em Orly, para aí passarmos uma temporada na sua companhia e na dos netos e nora e, a partir de onde contamos viajar de comboio por uns quantos países e cidades da Europa Central que, tanto eu como o Manuel, temos muita curiosidade em visitar. Finalmente vamos poder estar com vagar e tranquilidade e com toda a liberdade para palmilharmos e esgravatarmos os cantinhos culturais que a capital de França tem à disposição dos interessados; a verdade é que só contamos regressar na próxima Primavera ou até depois disso. Quero ir a Heidelberga e Bona, na Alemanha Federal e a Lovaina na Bélgica, neste caso para recordar dias intensos e felizes e ardo de paixão por o Manuel me sussurrar ao ouvido que quer namorar comigo na terra de Mozart.
Faz-se tarde e teremos que estar no aeroporto a meio da manhã. Sinto o frenesim das vésperas das viagens em que o paizinho e a mãezinha me levavam até à quinta dos avós para que aí passasse o Verão.
Estou a perceber que a reforma também é isto, um tempo mais leve para amar.

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