terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Pelas piores razões, vimo-nos forçados a interromper a nossa estada em Paris, onde alugámos um pequeno estúdio mesmo no prédio ao lado daquele onde mora o meu filho mais novo, justamente para que deles estivéssemos perto e deles pudéssemos partilhar o calor e o afecto de uma família maravilhosamente tranquila e feliz e, naturalmente, estarmos assim em posição de acompanhar os rebentos que estão cada vez mais crescidos e tanto gosto dá ver desabrochar como pessoas que se fazem de bem e com saúde e inteligência que é o que se pode concluir da compostura e delicadeza daquelas crianças que por isso não deixam de ser vivas e brincalhonas como todos os petizes devem ser. Pensávamos regressar depois do Verão, altura em que terei que tratar dos trâmites finais da minha aposentação e até lá contávamos fazer mais algumas surtidas a outras cidades estrangeiras – relativamente aos franceses, como é bom de entender – e para que, ao mesmo tempo que a proximidade nos presenteia e apaparica com os miminhos dos netos, não incomodássemos o quotidiano das suas vidas com a sobrelotação do espaço, aproveitámos a feliz oportunidade de arrendar aquilo que logo nos pareceu um ninho digno de enamorados e do qual fizemos o porto de abrigo das nossas andanças por outras paragens naquela região da Europa. Vá lá que estávamos em casa quando recebemos primeiro o telegrama e depois o telefonema da Mariana, dando a notícia do violento ataque cardíaco que o pai sofrera na noite anterior e que o lançara para um coma profundo do qual, os médicos, desde o primeiro momento disseram que dificilmente sairia. De outra forma muito provavelmente não teríamos como chegar aqui a tempo de o acompanharmos até a sua última morada. Pelas peripécias de marcar e obter um voo para Lisboa num repente de urgência, não me parece que o tivéssemos conseguido. Seja como for, viemos assim que pudemos e infelizmente chegamos na manhã em que aquele ente querido faleceu. Pelos piores motivos, portanto, tivemos que suspender a nossa licença parisiense para podermos estar presentes no funeral do amigo que para todo o sempre partiu. Escrevo ente querido e amigo pois é exactamente disso que se trata; sempre que penso nesta última palavra, é dele um dos rostos que me aflora ao cérebro. O senhor Abel era um ser humano fantástico que jamais se deixou abater e sempre conseguiu encarar a vida com a perspectiva de nunca deixar de procurar os lados ou os aspectos de que pudesse obter algo de positivo mesmo nas situações mais árduas e dolorosas. Era um homem de paz, ainda que fosse capaz de erguer o braço e lutar com fulgor e tenacidade e era alguém que procurava que aquilo que pudesse unir uns aos outros se sobrepusesse ao que divide e separa a menos que no essencial não fosse encontrável qualquer espaço para que se lançassem os alicerces das pontes em que tal acontece ou pode acontecer. E sabia ouvir e respeitar as opiniões alheias, jamais deixando de aceitar a democracia de uma decisão com que não concordasse. Nesse aspecto, aqui na comunidade e nestes últimos anos na associação, onde levou até ao fim a sua organização de passeios culturais e didácticos, como ele por fim dizia, era um verdadeiro exemplo de cidadania e apesar de se considerar comunista e de ter gosto em afirmar-se inscrito como simpatizante – ele era da opinião que não tinha autoridade e competência para se dizer militante – do partido, comportava-se como um democrata que punha a um canto muito boa figura desse bando de oportunistas que andam por aí a tratar da vidinha, das suas vidinhas particulares. Era também um ser humano bastante inteligente que aprendeu inglês e alemão bem perto dos cinquenta e, apesar de não ter grandes ocasiões para se desempoeirar em tais domínios, chegou a ler alguns textos no original. Era a sua faceta auto-didacta que o levou a estudar Física nas horas vagas com o mesmo intuito, como ele dizia, sempre com um sorriso, de tentar compreender o Universo e ver onde é que nós nos podíamos situar nessa infinitude. Já tenho saudades dos seus pensamentos e do seu humor sibilino e simultaneamente tão humano, tão profundamente humano. O senhor Abel era sapateiro quando chegámos aqui, ofício que aprendera para que pudesse fazer frente às imperiosidades de ganhar o sustento e o agasalho, primeiro para si e depois para si e as mulheres do seu coração e tinha um sorriso franco e que amiúde lhe brotava nos lábios a propósito de qualquer acontecimento do dia a dia, sequer dele se esquecendo quando eram abalos e borrascas aquilo por que estava a passar, pois, desde a mais tenra idade que sabia, tal como ele uma vez explicou, para lá do pensamento e como expressão deste, a única coisa que resta ao pobre e ninguém lha pode tirar era e é e sempre foi, precisamente, a capacidade de se rir de tudo e todos os que de alguma maneira concorrem para esse estado de pobreza em que aquele vive. Ainda bem que chegamos a tempo de assistirmos à sua última viagem, muito embora eu não tenha querido ver o cadáver. Prefiro guardar-lhe a memória das feições enquanto vivo.
Parece que o estou a ver com olhos de miúdo brilhando quando lhe surgiu a ideia para o nome que poderia substituir aquele que propusera e fora rejeitado pelo peso provocatório que, à época, consistiria para as autoridades. “-Já sei, vamos chamar Vale da Esperança.” –E foi assim que ele acabou por encontrar o nome para a comunidade em que vivemos e agora abandonou para o seu último sono.
Paz à sua alma.

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