Deus anda por aí a estender-nos a Mão
António
Justo
Ele está em
nós e entre nós; se bem observamos e sentimos, descobrimos a sua voz de criança
lá fora e cá dentro. Revela-se uma desilusão para quem quer um Deus perfeito,
ou à medida duma ferramenta mental que só conhece a dimensão do dentro ou do
fora, do afirmar ou negar. Ele é o companheiro de jornada a mostrar no seu
filho a nossa natureza humana e divina. Nele encontramos os nossos trabalhos,
necessidades, aspirações e alegrias. Nele nos encontramos completos e cientes
de que as horas do calvário são apenas sextas-feiras ao longo da vida.
A vida é uma
caminhada, com uma quadra no monte calvário e uma auréola de pôr-do-sol. Essa
cruz torna-se, no dia-a-dia, numa árvore, onde os passarinhos fazem ninho na
esperança de novos passarinhos. Ao longo da viagem encontra-se a mesma
expectativa no verde das folhas e no verde da esperança a brotar no horizonte
da subida.
No verde
redimido e nos frutos libertado, sigo o encanto guiado pelo aroma e pela
ressonância da fluência da vida. Neste estado já não há atraso. Posso
permanecer inteiro num gesto, numa folha, num ser, que se torna meta e caminho.
O mar terreno da vida transforma-se em superfície divina a brotar o sagrado. Já
não há bem nem mal, além nem aquém, apenas um estado de gravidez a dar à luz
Jesus num despontar de luz em cada ser a agradecer.
No outro
lado da morte as luzes também brilham a arredar a sombra que o sol arruma do
outro lado da noite. O dia morre na noite, a morte morre no dia, tal como o
ruído cinzento das cidades se vai no arredar das nuvens e no gorjear das
gaivotas.
A violência
é dia nas sombras da cidade, nos seus becos sem saída se junta a dor.
Nos becos da
vida, o mundo reúne a dor para com ela subir ao calvário e nele limpar o pó do
rosto de Deus no Homem ofendido. No meu caminhar sigo a divindade no sol por
trás das nuvens. Elas encobrem-na, mostram o meu escuro na sombra da cruz a
indicar a direcção da terra reconciliada.
A sombra que
encobre o Sol do meu dia-a-dia é a mesma sombra que oculta a verdade no rosto das
criaturas, na roupagem das instituições. A sombra multiplica-nos e esconde-nos
na sensação de alguém nos acompanhar. Por isso, os nossos monumentos se
enquadram melhor com a natureza; na sua sombra cintilam, brilham mais nas
ruínas. Lá, onde o brilho das fachadas já não deslumbra, repousa o silêncio a
surgir no verde que cobre o ruído da glória e viabiliza a liberdade criadora.
Também por
baixo da grandeza dos palácios e dos templos se esconde o sustento, o espírito
humilde e nobre que os fez crescer. Hoje, o espírito retido neles sobe à torre
em lânguidos brados. Na paisagem ecoa o seu sofrer de volta ao alto no olhar
das árvores e no vozear dos cães, enquanto, no fundo da encosta, um barulho
chão salta e grita, apertado, entre muros partidários, jurídicos, científicos,
económicos e religiosos. Muros contra muros atordoam a paisagem.
Também a voz
do mundo inveja e combate, nos muros das igrejas, a sombra dos próprios muros.
Desconhecem, contudo, o espírito que ergueu aquelas catedrais e que elas mantêm
encoberto. Querem uma religiosidade sem corpo nem vínculo, uma religiosidade à
la carte, a seu modo, sem igrejas nem personalidade. Uma religiosidade
cor-de-rosa, do sentir-se bem individualista, que reprime e afasta o espírito
religioso maternal para o sótão do intelecto, um ponto sem tempo nem lugar.
Aquele espírito encoberto e derramado na alma dos fiéis continua
imperceptivelmente, presente e vivo, a entrar nas igrejas e a fluir nos
corações das pessoas. O espírito divino, a nossa alma, andam derramados na
borda da calçada.
Como seres
corpóreos construímos organizações e templos onde espírito e corpo se congregam
e conservam o calor da memória. As pedras das catedrais, as instituições
acompanham-nos dando assistência ao nosso corpo para que as nossas almas, o
nosso espírito, acompanhado no paráclito se junte em comunidade para aí
realizar a união da pessoa à comunidade. As pedras dos templos e as
instituições não são o espírito líquido que precisamos, elas são apenas
fontanários. Se os negarmos com o pretexto de serem pedras juntas, teremos de
rastejar pelos regos da calçada para dela bebermos o espírito entornado. O
espírito como a água brota do fundo da terra depois de recolhidas as bênçãos
por onde passou.
O tempo que
corre é doce, anónimo e despersonalizante. Vive-se no crepúsculo da cultura,
sem tecto moral, ao sabor dos habilidosos do saber que lançam na noite os seus
fogos de vista. Encontramo-nos desalojados de nós próprios e levados pelas
ventanias da opinião, sempre expostos à chuva duma moral ácida. No crepúsculo
da cultura o Espírito anda por aí a estender-nos a mão.
António
da Cunha Duarte Justo
Teólogo e
Pedagogo
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