terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



São engraçados os laços que se estabelecem entre as pessoas que, para além daqueles que decorrem naturalmente da filiação ou, se quisermos, da consanguinidade e dos envolvimentos colaterais que lhes estão associados e mesmo com esses isso acontece, são sempre relações de sociabilidade, de convivência que se estabelecem e, consentidas ou não, têm como ponto de partida a vontade dos envolvidos. A amizade é um deles e quando ela é profunda, isto é, quando é sinceramente assumida pelas partes que une e se alicerça numa comunhão que aceita o outro com o carácter que as suas qualidades lhe conferem e se traduz para cada um no prazer que se tira do convívio, seja ou não físico e em primeiro grau, é uma dessas pontes com que nos ligamos às outras ilhas que todos somos e uma das quais resiste ao acumular das sucessões entre os verdumes que brotam e os secos acastanhados que se estatelam ao sabor do vento. Por muito prolongada que seja uma ausência, nunca nos esquecemos da memória que temos do rosto e o que sucede depois é que as palavras se reatam como se nunca tivessem sido interrompidas. E agora fiquei a saber que ela até resiste à morte que lhe coloca, como a tudo, um ponto final, é certo, mas não a apaga no que foi e até, como é o caso, deixa que se manifeste com a mesma robustez das horas vivas. O Artur que agora repousa no cemitério em que os muros surgiram para demarcarem a área onde sepultámos os nossos mortos e mesmo ele que chegou a ter as cores e os odores de um jardim de recato, está agora ao descuido de não haver quem dele cuide, o Artur cumpriu e não cumpriu o que planeou executar nesta vintena de anos que viveu depois do trabalho e que tão plenamente foram preenchidos com a sua paixão de sempre, a música e os seus estudos sobre as tradições portuguesas neste campo e as suas recolhas de letras e versos, cantigas e acordes que paulatinamente foi executando sem jamais abdicar dos propósitos de aperfeiçoamento. Nessa dimensão terá cumprido plenamente o que almejou e também no referente à procura do Félix ele não faltou à palavra, tendo chegado a estabelecer contactos através da embaixada israelita e conseguido falar com um ou outro sujeito que por este ou aquele motivo conheceram aquele nosso velho amigo. Contudo não o encontrou, a ele ou à Éster e com isso deixou por cumprir o intento de o pôr a par de tudo o que continuara no trabalho que ambos haviam iniciado e muito menos de lhe oferecer os materiais resultantes de tão zeloso empenhamento. E acabou por ser o Félix a encontrá-lo ou melhor, um neto do Félix, o Amos que fala um português gramaticalmente trapalhão e com alguns géneros trocados que regularmente induzem o riso, a quem o pai encarregou da missão de entregar ao Artur o espólio que o seu pai lhe legara com o pedido expresso de dar conta daquela entrega a um companheiro que não mais vira. Segundo o rapaz que cumpriu o serviço militar e não sabe muito bem o que fazer com o seu curso e aptidões no âmbito da engenharia hidráulica, pois às funções que facilmente encontrará no seu país somam-se propostas de laboração no Sul de Espanha, em Múrcia e talvez por isso aqui tem permanecido nestes últimos meses, o avô dizia que aquelas caixas continham a parcela que lhe cabia do que resultou das investigações que em conjunto tinham efectuado pelo que ao Artur competiriam, pois só ele poderia saber o que melhor fazer com elas. Infelizmente este já estava enterrado há uma semana quando o mensageiro aqui chegou e como afinal tudo aquilo é agora pertença de ninguém, tem sido ele que dias a fio se tem perdido naqueles conteúdos e talvez a propósito disso, tanta curiosidade tem revelado por saber desta aventura tão invulgar de que os seus avós paternos foram uns dos intérpretes. Tem sido a minha companhia em muitos dos jantares que, só, eu não comeria e uma fonte de convivências para a Sofia que acabou por passar aqui todo o Verão. Lamento é que em vez de ver, até participar, ele tenha apenas para ouvir a memória da única sobrevivente do grupo fundador. Mas não é por isso que se mostra menos interessado e deixa de fazer perguntas e mais perguntas que já atiraram alguns serões pela madrugada fora, a ponto de a minha neta, carinhosamente, ter uma ou outra vez afagado a avozinha que, estando cansada, mais precisava de dormir. Que pena que eu tenho que ele não possa testemunhar como foi bonita a realidade do sonho que o seu avô contribuiu para materializar. Agora que até algumas das fábricas que foram divididas e subtraídas à cooperativa já fecharam e na aldeia resistem três ou quatro casas em que habitam os velhos que aqui ficaram por não terem para onde ir e a associação mais não é que uma espécie de café sem nada que vender onde os desterrados se encontram, para admirar estão só os edifícios desolados e as ruas desertas de um mundo parado, esmagado pela partida de todos os que alegremente se vão divertindo e iludindo pelas peripécias do crédito barato. É este afinal o tal enriquecimento prometido pela ideologia dos mercados livres que, em nome dos equilíbrios orçamentais e da racionalidade, sob a capa das reformas para diminuir o peso do estado na economia e na sociedade, se prepara em toda a parte para pôr em causa o chamado modelo social europeu que os portugueses mal chegaram a conhecer. Mas é para isso que aponta a auto-denominada terceira via dos trabalhistas britânicos que recentemente se separaram das suas raízes operárias e sindicais. Ora nós já estamos habituados a levar com estas modas em segunda mão e os socialistas que regressaram ao poder afirmam pelo mesmo diapasão. Só me espanta que ninguém pare para pensar no que se diz e sustenta e deixe passar em branco a pergunta mais comezinha de todas, apesar de tudo vir embrulhado nos mais doutos pareceres acerca da falta de sustentabilidade económica que um envelhecimento populacional, como é o que se verifica nos países desenvolvidos, acarreta; e a pergunta é muito simplesmente qual é a alternativa? A privatização do estado, como no limite acaba por se antever no que algumas luminárias propalam? Espanta-me como de repente se esquece que o desenvolvimento, em termos práticos, significou e é a redistribuição da riqueza e foi esta que permitiu o ambiente de justiça social que se tem vivido. É com isso que querem terminar? Mas será isso a que porão fim se insistirem nesta lógica de tudo querer submeter às regras do mercado e ao modo de funcionamento da economia e sociedade que a isso estará inerente. Espanta-me como ninguém contrapõe a estes senhores que na maioria dos casos foram os que tiveram responsabilidades dirigentes nos organismos públicos que agora nos vêm dizer que estes não têm vocação para gerir que essa é património exclusivo da iniciativa privada, como se não tivesse sido gente, precisamente eles, os responsáveis por esses maus resultados. E falam tanto em liberdade, mas deve ser a dos filhos deles escolherem, pois, se desmantelarem o estado social, qual será a liberdade dos filhos dos pobres? Não é a liberdade a possibilidade de escolher uma vida, um caminho na vida? Ou será apenas retórica para ficar bem no retrato da teoria? Como é que o filho de um desempregado, de um trabalhador mal pago e com emprego precário, sem o recurso a uma boa rede pública de escolas e bibliotecas, a bons serviços que lhes garantam uma boa saúde, como é que os filhos dessas pessoas poderão ser livres, isto é, escolherem um caminho na vida? Livres de perpetuarem a pobreza e sem possibilidades de escolha, será isso a liberdade de que falam? Certo e sabido é que será para o aumento dessa precariedade de vida que um mundo deixado pura e simplesmente às leis do mercado conduzirá. Tempos difíceis os que vivemos em que, após a queda do bloco comunista, não há quem na esquerda – poderia ser na direita? – tenha uma proposta diferente deste pensamento único que se impõe de uma forma avassaladora. Quando o que conta é o lucro e nada para além dele e a rentabilidade, estaremos inevitavelmente perante a decisão que se toma apenas com base nos números, sequer entendendo que escondem rostos e vidas na sua frieza.

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