domingo, 9 de fevereiro de 2014



(O Miguel Torgal voltou a não dar notícias. Vou ficar à espera da próxima semana.)

* * *

Foto: Edgar Cantante


“ (…) Às vezes aqui faz frio
Às vezes eu fico imóvel (…) ”

XUTOS E PONTAPÉS


Acordei e levantei-me de mansinho sem fazer barulho.
Tomei um duche, fiz a barba e vesti-me.
Saí de casa ainda o resto da família dormia.
Estava num daqueles dias em que apetecia andar de mansinho para não empatar o andar dos outros.
Falar de mansinho para não abafar a fala dos outros.
Olhar de mansinho para todos poder abarcar no embalo que o olhar alcançava.
Estava num daqueles dias em que até parecia que o coração não cabia no peito e o trazia na concha das duas mãos entrelaçadas.

A moça do café entornou a bica, queimando-me a mão e sujando-me a camisa e as calças e eu disse «deixe lá que acontece a todos».
O ministro falou, na televisão, e não me irritei.
Duas pessoas na mesa ao lado falavam das últimas da “Casa dos Segredos” e pensei que «enfim, é um direito que lhes assiste».
Uma mãe contava a uma sua amiga os carinhos do filho e senti-me também acarinhado. Duplamente acarinhado.
Um dos nossos “desamparados” pediu uma moeda, eu dei.
Outro pediu um cigarro, eu dei e ofereci lume.
Abreviei a leitura do jornal porque percebi que na mesa ao lado também queriam ler.
Na padaria, uma senhora idosa, deixou cair as moedas da carteira e ajudei a apanhá-las. E sorri-lhe.
Ao sair da padaria um carro passou a acelerar por uma poça de chuva, encharcou-me e abanei a cabeça.
Simplesmente abanei a cabeça.
Fui à mercearia, cumprimentei amigos e ri com as piadas habituais.
Também participei.
Pensei, é bom morar numa terra onde todos se conhecem.
Saí da mercearia e recomeçou a chover.  
Lá me ajeitei com os sacos e o guarda-chuva aberto.

Prestes a entrar em casa, frente à minha porta, um homem remexia no contentor do lixo. Não era daqui pois não o conhecia.
Sôfrego, comia directamente os restos de comida que apanhava.
Chamei-o.
Ele veio meio desconfiado.
«Está de chuva», disse-lhe.
«Pois está», respondeu.
«Quer estas bananas?»
Ergueu o olhar surpreso, «dá-mas?»
«Sim, dou.» E no saco das bananas juntei um pão, um queijo fresco e uns torresmos.
Estendi-lhe o saco e ele perguntou «é pra mim? Dá-me?»
Acenei que sim com a cabeça e entrei no prédio.
Quando entrei em casa, a raiva que as lágrimas molhavam, toldava-me o olhar.
Tentei suste-las mas só consegui que um soluço, ou guincho ou ronco animal arrancado das entranhas e arranhando no trajecto rebentasse.
Parti um copo.
Peguei noutro e enchi-o de água.
Bebi.
Sentia humilhação.
E cansaço.

Deitei-me no sofá e tapei-me com um édredon.
Fiquei ali deitado, de olhos abertos e a sentir-me gelado.
A minha mulher abeirou-se e perguntou «que é que se passa?»
«Dá-me um beijo», pedi.
Ela deu olhando-me interrogativamente.
Fechei os olhos por momentos.
Ela retirou-se deixando-me ali.
O corpo tardava a aquecer.
Manuel João Croca


 Foto: Edgar Cantante


15 comentários:

Diogo Correia disse...

Crocaa!!!

Este texto tem qualquer coisa de profundo.

Por entre a podridão que rodeia o mundo ainda encontramos força para dar nem que cheguemos a casa exaustos.


Forte Abraçoo

Diogo

Amélia Oliveira disse...

MJC,

Ecos da vida que se vive de mansinho e que nos deixa com frio, exaustos, imóveis...
Gostei muito do conjunto - e a canção dos Xutos 'assenta-lhe' tão bem... no dia em que Neptuno nos enviou a Ruth - e o Sol que vai tardando...

Um bom Domingo!
Amélia

MJC disse...

Amigo Diogo, viva.

Exaustos e com gestos e olhares a inquietarem-nos e a reservarem lugar na eternidade da memória perturbada.

Abraço.

Manuel João

MJC disse...

Olá Amélia viva!

Pois, e para lá do mais ainda este tempo que parece convidar a melancolia a fazer ninho.
Ainda gostava de saber porque dão nome de mulher a estas tempestades que nos vão visitando.
E logo Ruth que é um nome tão bonito, quer dizer eu gosto.
Bom domingo para ti também.

Manuel João

Amélia Oliveira disse...

Também tinha a sensação de que as tempestades são, normalmente, baptizadas com nomes femininos... mas antes da Ruth (nome de que também gosto bastante, para além de ser o nome de uma boa amiga, exactamente assim, com 'th') veio o Hércules, não foi?
Bem, fui à procura e deixo-te um breve resumo do que apurei:

'Durante a Segunda Guerra Mundial, segundo o Centro de Furacões dos EUA, os ciclones ganharam informalmente nomes de mulheres, dados pelos meteorologistas da Marinha. Na década de 1950, os ciclones do Atlântico Norte começaram a ser chamados com nomes cuja primeira letra seguia a ordem alfabética (Able-Baker-Charlie-etc.). Em 1978, passaram a ser usados tanto nomes de homens como de mulheres.'

Para mais informação sobre o assunto, é favor perguntar ao Google :) - ou a algum entendido na matéria!

Abraço,
Amélia

luis santos disse...


As duas partes que nos constituem, não é? a boa e a má, a alegria e a tristeza, "and so on"...

MJC disse...

Olá Amélia.

Por acaso até nem tenho particular curiosidade pelo assunto mas já viste? andávamos ainda para aqui às voltas com uma tal de Ruth e eis que nos bate à porta a Stephanie.
Enfim, um desassossego.
Abraço,

Manuel João

MJC disse...

Pois é Luís mas a tristeza pode ter muitas matrizes.
As que vêm dali, mais do que tristeza, ofendem-nos a todos.

Abraço.

Manuel João

Amélia Oliveira disse...

MJC

Nem me fales em tamanho desassossego, que deixou o 'meu' Algarve bem menos colorido... a Ruth e a Stephanie despiram as amendoeiras quase todas... ficou o mar, que hoje está cor de chumbo (não sou lá muito boa com os nomes das cores, mas é isso que me parece). URGENTE: Primavera precisa-se...

Abraços,
Amélia

luis santos disse...


Não percebeste. Estava a falar daquela que nos é exclusivamente intrínseca.

MJC disse...

É normal que, ao fim de um tempo, se deseje um novo ciclo.
A renovação é característica intrínseca da vida.
Já a tristeza o não será obrigatoriamente.
E, assim sendo, a questão surge e impõe-se:
De onde virá esta tristeza ?
Valerá a pena tentar descobrir porque se é triste quando cada ser tende, indubitavelmente, a procurar a felicidade?

Abraços.

Manuel João Croca

luis santos disse...


A renovação é desejável e... possível. A dificuldade é COMO chegar lá.

MJC disse...

Pois, o caminho.
É nessa procura que andamos. Todos, creio.

Abraço.

Manuel João

Gil disse...

Já li e reli e não escrevi nada, porque não me saiam as palavras.
Às vezes pensamos que temos de dizer as palavras apropriadas.

E depois li-vos aqui a falarem sobre a Ruth e a Stephanie... e de novo fiquei sem palavras apropriadas.

Gostei. Tocou-me. Obrigada.

Abraço

P.S.: há coisas que outros escrevem que nos avivam (demasiado) a memória para as nossas próprias histórias

MJC disse...

Viva Fernanda.

As palavras apropriadas são aquelas com que, em dada altura, nos permitimos verbalizar o que sentimos. Nesse sentido, aquelas que encontraste são mais do que apropriadas e eu, enquanto autor do texto, fico contente por teres gostado.

Já quanto a "obrigados" quem agradece sou eu. O teu comentário, as tuas palavras.

Beijo.

Manuel João Croca