(O Miguel Torgal voltou a não dar notícias. Vou ficar à espera da próxima semana.)
* * *
Foto: Edgar Cantante
“
(…) Às vezes aqui faz frio
Às
vezes eu fico imóvel (…) ”
XUTOS
E PONTAPÉS
Acordei
e levantei-me de mansinho sem fazer barulho.
Tomei
um duche, fiz a barba e vesti-me.
Saí
de casa ainda o resto da família dormia.
Estava
num daqueles dias em que apetecia andar de mansinho para não empatar o andar
dos outros.
Falar
de mansinho para não abafar a fala dos outros.
Olhar
de mansinho para todos poder abarcar no embalo que o olhar alcançava.
Estava
num daqueles dias em que até parecia que o coração não cabia no peito e o
trazia na concha das duas mãos entrelaçadas.
A
moça do café entornou a bica, queimando-me a mão e sujando-me a camisa e as
calças e eu disse «deixe lá que acontece a todos».
O
ministro falou, na televisão, e não me irritei.
Duas
pessoas na mesa ao lado falavam das últimas da “Casa dos Segredos” e pensei que
«enfim, é um direito que lhes assiste».
Uma
mãe contava a uma sua amiga os carinhos do filho e senti-me também acarinhado.
Duplamente acarinhado.
Um
dos nossos “desamparados” pediu uma moeda, eu dei.
Outro
pediu um cigarro, eu dei e ofereci lume.
Abreviei
a leitura do jornal porque percebi que na mesa ao lado também queriam ler.
Na
padaria, uma senhora idosa, deixou cair as moedas da carteira e ajudei a
apanhá-las. E sorri-lhe.
Ao
sair da padaria um carro passou a acelerar por uma poça de chuva, encharcou-me
e abanei a cabeça.
Simplesmente
abanei a cabeça.
Fui
à mercearia, cumprimentei amigos e ri com as piadas habituais.
Também
participei.
Pensei,
é bom morar numa terra onde todos se conhecem.
Saí
da mercearia e recomeçou a chover.
Lá
me ajeitei com os sacos e o guarda-chuva aberto.
Prestes
a entrar em casa, frente à minha porta, um homem remexia no contentor do lixo. Não
era daqui pois não o conhecia.
Sôfrego,
comia directamente os restos de comida que apanhava.
Chamei-o.
Ele
veio meio desconfiado.
«Está
de chuva», disse-lhe.
«Pois
está», respondeu.
«Quer
estas bananas?»
Ergueu
o olhar surpreso, «dá-mas?»
«Sim,
dou.» E no saco das bananas juntei um pão, um queijo fresco e uns torresmos.
Estendi-lhe
o saco e ele perguntou «é pra mim? Dá-me?»
Acenei
que sim com a cabeça e entrei no prédio.
Quando
entrei em casa, a raiva que as lágrimas molhavam, toldava-me o olhar.
Tentei
suste-las mas só consegui que um soluço, ou guincho ou ronco animal arrancado
das entranhas e arranhando no trajecto rebentasse.
Parti
um copo.
Peguei
noutro e enchi-o de água.
Bebi.
Sentia
humilhação.
E
cansaço.
Deitei-me
no sofá e tapei-me com um édredon.
Fiquei
ali deitado, de olhos abertos e a sentir-me gelado.
A
minha mulher abeirou-se e perguntou «que é que se passa?»
«Dá-me
um beijo», pedi.
Ela
deu olhando-me interrogativamente.
Fechei
os olhos por momentos.
Ela
retirou-se deixando-me ali.
O
corpo tardava a aquecer.
Manuel João Croca
Foto: Edgar Cantante
15 comentários:
Crocaa!!!
Este texto tem qualquer coisa de profundo.
Por entre a podridão que rodeia o mundo ainda encontramos força para dar nem que cheguemos a casa exaustos.
Forte Abraçoo
Diogo
MJC,
Ecos da vida que se vive de mansinho e que nos deixa com frio, exaustos, imóveis...
Gostei muito do conjunto - e a canção dos Xutos 'assenta-lhe' tão bem... no dia em que Neptuno nos enviou a Ruth - e o Sol que vai tardando...
Um bom Domingo!
Amélia
Amigo Diogo, viva.
Exaustos e com gestos e olhares a inquietarem-nos e a reservarem lugar na eternidade da memória perturbada.
Abraço.
Manuel João
Olá Amélia viva!
Pois, e para lá do mais ainda este tempo que parece convidar a melancolia a fazer ninho.
Ainda gostava de saber porque dão nome de mulher a estas tempestades que nos vão visitando.
E logo Ruth que é um nome tão bonito, quer dizer eu gosto.
Bom domingo para ti também.
Manuel João
Também tinha a sensação de que as tempestades são, normalmente, baptizadas com nomes femininos... mas antes da Ruth (nome de que também gosto bastante, para além de ser o nome de uma boa amiga, exactamente assim, com 'th') veio o Hércules, não foi?
Bem, fui à procura e deixo-te um breve resumo do que apurei:
'Durante a Segunda Guerra Mundial, segundo o Centro de Furacões dos EUA, os ciclones ganharam informalmente nomes de mulheres, dados pelos meteorologistas da Marinha. Na década de 1950, os ciclones do Atlântico Norte começaram a ser chamados com nomes cuja primeira letra seguia a ordem alfabética (Able-Baker-Charlie-etc.). Em 1978, passaram a ser usados tanto nomes de homens como de mulheres.'
Para mais informação sobre o assunto, é favor perguntar ao Google :) - ou a algum entendido na matéria!
Abraço,
Amélia
As duas partes que nos constituem, não é? a boa e a má, a alegria e a tristeza, "and so on"...
Olá Amélia.
Por acaso até nem tenho particular curiosidade pelo assunto mas já viste? andávamos ainda para aqui às voltas com uma tal de Ruth e eis que nos bate à porta a Stephanie.
Enfim, um desassossego.
Abraço,
Manuel João
Pois é Luís mas a tristeza pode ter muitas matrizes.
As que vêm dali, mais do que tristeza, ofendem-nos a todos.
Abraço.
Manuel João
MJC
Nem me fales em tamanho desassossego, que deixou o 'meu' Algarve bem menos colorido... a Ruth e a Stephanie despiram as amendoeiras quase todas... ficou o mar, que hoje está cor de chumbo (não sou lá muito boa com os nomes das cores, mas é isso que me parece). URGENTE: Primavera precisa-se...
Abraços,
Amélia
Não percebeste. Estava a falar daquela que nos é exclusivamente intrínseca.
É normal que, ao fim de um tempo, se deseje um novo ciclo.
A renovação é característica intrínseca da vida.
Já a tristeza o não será obrigatoriamente.
E, assim sendo, a questão surge e impõe-se:
De onde virá esta tristeza ?
Valerá a pena tentar descobrir porque se é triste quando cada ser tende, indubitavelmente, a procurar a felicidade?
Abraços.
Manuel João Croca
A renovação é desejável e... possível. A dificuldade é COMO chegar lá.
Pois, o caminho.
É nessa procura que andamos. Todos, creio.
Abraço.
Manuel João
Já li e reli e não escrevi nada, porque não me saiam as palavras.
Às vezes pensamos que temos de dizer as palavras apropriadas.
E depois li-vos aqui a falarem sobre a Ruth e a Stephanie... e de novo fiquei sem palavras apropriadas.
Gostei. Tocou-me. Obrigada.
Abraço
P.S.: há coisas que outros escrevem que nos avivam (demasiado) a memória para as nossas próprias histórias
Viva Fernanda.
As palavras apropriadas são aquelas com que, em dada altura, nos permitimos verbalizar o que sentimos. Nesse sentido, aquelas que encontraste são mais do que apropriadas e eu, enquanto autor do texto, fico contente por teres gostado.
Já quanto a "obrigados" quem agradece sou eu. O teu comentário, as tuas palavras.
Beijo.
Manuel João Croca
Enviar um comentário