terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


      
Ai estou tão contente, tão contente que até sinto dificuldade em coordenar as ideias e os factos que quero registar. Sinceramente, voltei a passar pela mesma euforia que antecedeu o dia em que aqui chegámos há cinquenta e sete anos e que se prolongou por aqueles árduos e longos meses em que pusemos de pé as casas que vieram a ser as nossas e que depois se transformou na alegria que permaneceu ao longo da vida e que apesar das dificuldades e revezes, das aflições e angústias que atravessamos e as dores e tristezas que sofremos, só veio a ser decepada quando o ardil das boas intenções de ganâncias disfarçadas pôs termo à experiência que a comunidade do Vale da Esperança representou e desta vez não foi só a euforia, tive direito ao bónus de não ter agarrada a estranha mistura da angústia que então me deixava na dúbia hesitação do receio que tudo viesse a correr mal, muito pior do que o nosso esperançoso optimismo nos consentiria antever. Há um bom semestre que a ideia caiu à fala e foi germinando e alastrando, ganhando forma e consistência nas conversas que um pequeno círculo de sangue novo foi mantendo entre si, muitas delas à mesa dos meus jantares que, desde a primeira hora, me fizeram partilhar o segredo da possibilidade de um relançamento da cooperativa e do estilo de vida que aqui se viveu e de que eu fui narradora até à exaustão da minha provecta idade, mas também com o gozo de reviver momentos gloriosos e de perceber estar a ser bebida por uma plateia interessada em aprender referências de comparação para os seus próprios planos. Nem me quis antecipar para não transformar a esperança em falsas esperanças, embora cedo me tenha parecido que as intenções eram sólidas e as vontades determinadas, não tanto em fugir do mundo, como disse o João Alan, neto do José Pedro e que de uma maneira ou de outra queria lançar-se na actividade agrícola, antes por se recusarem a acreditar que não há qualquer alternativa à sociedade de consumo e à escravidão perante a lógica dos saldos imediatos que tomou conta de tudo, quase se diria até das próprias relações familiares que se medem pela facilidade com que estalam divórcios porque afinal, o dia a dia do lar não era o doce que se pensava. Sim, simplesmente respirar acima do totalitarismo dos relógios e da felicidade que se esgota naquilo que se tem. Eu via-os sorridentes e compenetrados nas opiniões e anseios em troca e ia compreendendo que aqueles jovens estavam prontos e prestes a darem os mesmos passos dos avós, convictos de pretenderem existir e não apenas estar vivos, partilhando esforços e preocupações de modo a ficarem libertos da tirania de terem que prover ao sustento no mercado de trabalho e depois, como é tão frequente, terem que produzir gastos e obrigações que implicam o aumento do trabalho no inverso do cada vez menos espaço para os afectos e o mero usufruir da frescura de uma brisa no rosto. No entanto contive-me e quis esperar pelas decisões que foram tomadas e pelos braços que se atiraram ao muito que há para erguer. É como disse com um sorriso maroto o Manuel, o meu querido neto mais velho que se resignou a ser médico como o pai e o seu bisavô e agora quer seguir o papel de um clínico de família que, ao mesmo tempo, se ocupará de assuntos de lavoura, é um enorme desperdício que uma piscina daquelas seja um buraco sujo onde os lixos dos ventos e das chuvas se acumulam. E agora que os filhos do Adão aceitaram continuar e unir esforços para que voltemos a ter uma cooperativa activa, posso finalmente escrever que este sinal de esperança não se ficou pelo caminho e acabou por dar fruto. O Amos e a Sofia que já não escondem o desejo de vivierem juntos, como ele continua a soletrar com o ar mais sério deste mundo, mas como ambos dizem ser preferível ao casamento, juntaram-se-lhes e a verdade é que projectos não faltam e bom senso para lhes dar forma progressiva e ponderada, sem as precipitações dos castelos que de areia se edificam, também não. Mas dá gosto vê-los falar da recuperação das vinhas e da produção de vinhos de qualidade, assim como do aproveitamento de parte das casas do antigo bairro operário para turismo rural que esta imensa propriedade pode oferecer e que na área que sempre permaneceu selvagem tem o acréscimo da observação da fauna e até da flora e que na piscina que outrora foi da associação, uma vez recuperada, tem já um equipamento de apoio usualmente apelativo neste género de empreendimentos e a que um museu sobre a própria comunidade do Vale da Esperança conferirá uma mais-valia de interesse e, porque não, de receita. E se há materiais para o fazer e bom. E a proposta em torno das energias renováveis e de produção de tecnologias para o aproveitamento da água que o Amos, com o seus servicios e os tu que digo, sem esquecer o pequeno primo Matilde que de vez em quando telefona à Sofia, a dizer que também quer vir para aqui com o namorado, pretende pôr em prática, também me pareceu exequível e cheio de potencialidades. Que o ânimo está alto e robusto e as forças em alta, dá conta todo o trabalho de limpeza e arranjos que já conseguiram nos campos ou a recuperação dos armazéns que depois foram garagens no sopé da colina do depósito de água e ver que é assim deixa-me tão, tão contente. 
 É tão bom, tão bom ver este lugar voltar a ganhar vida.

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