quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

De Alhos Vedros até à Índia


(a propósito das Comemorações de "Alhos Vedros, 500 anos de Foral")


por Luís Santos

Supostamente, podemos então imaginar D. João I no Palácio situado no Cais Velho da vila de Alhos Vedros, pertença de seu filho bastardo D. Afonso que o acompanhava, recebendo os infantes e conversando sobre a possibilidade de, para o bem e para o mal, se ir guerrear a Ceuta. Nas traseiras daquele que é hoje designado pelo Palacete dos Condes de Sampaio haveria um alpendre que protegia daquele intenso sol do mês de Julho e contíguo ao qual se estendia um belo jardim. Amante que o rei era dos cavalos, da caça, da música, da dança, das lutas corpo a corpo, do jogo da pela e do xadrez, apesar do luto, pode-se imaginar como se ia gastando o tempo ali naquele nobre lugar. Deixou-nos de sua autoria o “Livro de Montaria”.

 Embora documentalmente não se possa sustentar que a estadia de D. João I tenha ocorrido com certeza absoluta naquele lugar do Cais, em alternativa, aparece-nos o Palácio da Graça, situado perto daquele que hoje é chamado de Largo da Graça, mesmo ao lado da Quinta da Graça, e que em meados do século passado ainda estaria habitável, mas do qual, hoje, só existem ténues vestígios, o que o torna, desde logo, um sítio de grande valor arqueológico para a história local, pois que pode acrescentar algumas informações importantes aos conhecimentos que hoje temos sobre a região.

Este foi sem dúvida um período áureo da história de Alhos Vedros. Entre outros atributos, sabe-se que a dimensão do território era apreciável estendendo-se entre os limites da Aldeia Galega (Montijo), Palmela e Coina; o número de habitantes era muito significativo para a época, falando-se em “oitocentos e tantos moradores”(*), onde constavam alguns senhores da alta nobreza em suas casas apalaçadas; tinha direito de voto nos destinos do país quando se reuniam as “Cortes”; tinha duas Igrejas, várias ermidas e dois conventos; uma crescente atividade económica que se foi desenvolvendo desde os inícios da nação, onde, relembre-se, pontifica uma importante indústria naval, uma abundante produção agro-pecuária, muito sal, lenha e pedra da Arrábida, num período onde a navegabilidade do estuário do Tejo e a proximidade com Lisboa eram elementos cruciais de produção de riqueza.

E talvez tenha sido este também o seu período de maior apogeu, porque a epidemia da peste negra que grassou por todo o continente europeu, e que dizimou cerca de dois terços da sua população total, também atingiu o nosso país e a nossa vila. É sabido que trezentos anos depois Alhos Vedros contava só com aproximadamente um quarto da população que teve neste período. Com a peste, entre a gente mais ilustre, foi não só a Rainha Filipa de Lencastre, como parece que também havia de ir uns bons anos depois o seu filho D. Duarte.

Eis algumas curiosidades interessantes à época sobre os descendentes de D. João I e que, de alguma forma, também se ligam à história de Alhos Vedros:

- D. João I, morre em 1433, com 76 anos, um período razoavelmente longo de vida para a época.

- D. Duarte I, sucede ao pai como rei de Portugal e continua a expansão do território, por terra e por mar. No seu tempo conquistam-se várias cidades importantes no norte de África (Marrocos), tal como é no seu tempo que se dobra o Cabo Bojador (1434), na costa ocidental africana, lugar mítico de então que se abria para um mundo marítimo desconhecido.

- O Infante D. Henrique, nomeado Grão-Mestre da Ordem de Cristo em 1420, instala-se em Sagres onde cria uma Escola Náutica e passa a liderar o projeto da Expansão Ultramarina Portuguesa. A ele se atribui também uma cátedra de Astronomia na Universidade de Coimbra, fundada por D. Dinis. Para lá do Cabo Bojador chega-se ao Senegal, Cabo Verde, Guiné, ultrapassando os limites do deserto do Saara e abrindo portas para toda a África Meridional. “Em 1452 a chegada de ouro era em suficiente quantidade para que se cunhassem os primeiros cruzados nesse metal.”(**) Morre em 1460, deixando explorada a costa africana até à Serra Leoa.

- D. Afonso, Conde de Barcelos, embora filho ilegítimo de D. João I, torna-se o tio mais próximo de Afonso V quando este sucede a seu pai D. Duarte como rei de Portugal, que o nomeia Duque de Bragança, na altura uma das casas mais ricas de Portugal e da Europa.

- Por fim, D. João II, filho de Afonso V e bisneto de D. João I, continua o tremendo e arrojado projeto da exploração atlântica, dando prioridade à descoberta de um caminho marítimo para a Índia. Foi ele quem negociou com os reis católicos que criaram Espanha, o Tratado de Tordesilhas, em 1494, que dividia o mundo em dois hemisférios, separados justamente pelo meridiano de Tordesilhas, onde se acordou que as terras a ocidente desse meridiano seriam exploradas pelos espanhóis e a oriente pelos portugueses, as duas maiores potências náuticas da época. Morreu em 1495, sem deixar filhos legítimos.


(*)ALVES, P. Carlos Póvoa, Subsídios para a História de Alhos Vedros, ed. do autor, 1992 (1ª edição), p.18.
(**)Wikipédia Livre, Infante D. Henrique, 22/2/2014
Imagem: Cruz de Cristo, símbolo que identificou, dentre outros, as naus portuguesas durante os descobrimentos.


10 comentários:

Unknown disse...


Luís Carlos, parabéns!

Que belo 'artigo' aqui tens, pelas 'abordagens' que fazes!
Será que não irá despoletar a curiosidade e as consciências de quem de direito?!
Oxalá não caia em saco roto...
Aguardemos para constatar.

Prossegue, sem perderes a coragem.

Um grande abraço.

Francisco Noronha

aluzdascasas disse...

É sempre muito belo e comovente sentir nos espaços que conhecemos o perfume da história, ainda que por vezes a história tenha sido dura. Mas é a nossa história. Um abraço Luís, parabéns.

MJC disse...

E assim, como quem não quer a coisa, vamos acedendo a conhecimentos que importam e nos importam.

Venha o próximo.

Abraço.

Manuel João Croca

Amélia Oliveira disse...

Que belos passeios nos proporcionam estes artigos - por sítios que julgamos conhecer tão bem, mas cuja história tantas vezes desconhecemos. Muito interessante - e que continuem as viagens.

luis santos disse...


Obrigado Francisco. Parabéns para ti também. O nosso trabalho há-de dar os seus frutos. Não sei se serão os devidos, mas pelo menos um maior conhecimento dos pormenores da nossa história não será mais o mesmo e estará à disposição dos interessados. Estou convicto que muitas coisas irão nascer destas nossos pequenos estudos. Vejo neles uma porta aberta para o infinito, para a eternidade.

Aquele Abraço.

luis santos disse...


Risoleta, que bom teres aparecido. Já o textinho arranjou uma bela razão de ser. É verdade a nossa história faz-se, muitas vezes, para o bem e para o mal. Saibamos peneirá-la.

Beijinhos, beijinhos.

luis santos disse...


Viva amigo Manuel João. Estamos em ano de comemorações, não é. Por agora, vejo tudo tão murcho à nossa volta que não podemos deixar morrer a festa. Mandamos foguetes e corremos a apanhar as canas. Como se vê, há muito por onde comemorar. E mais que não seja, dá-nos o passado motivos para festejar aqui e agora, futuro fora.

Aquele Abraço.

luis santos disse...


Amélia Oliveira, obrigado pelo interesse e ainda bem que dá para passear. Assim, vou ganhando razões para olhar para as coisas de forma menos distraída, sem tempo. Aquele Abraço.

Anónimo disse...

Creio que nessa época ainda não havia a Universidade de Coimbra mas sim os Estudos Gerais em Lisboa. Só no reinado de D.João III eles teriam ido para Coimbra.
Estarei enganado?
Miguel Boieiro

luis santos disse...


A Universidade Portuguesa, foi criada por D. Dinis em Lisboa, em 1290, mas acabou por ser transferida por Ele para Coimbra em 1308.
Ao longo do tempo a Universidade andou várias vezes entre as duas cidades e fixou-se definitivamente em Coimbra no reinado de D. João III, em 1537.

E Abraço.