por Luís Santos
(…)
Nesta vila há uma ilha
Que a voz mansa dessas águas
Chama de eterna maravilha,
Num momento mais insensato
Chamaram-lhe “Ilha do rato”,
Mas eu nos meus sonhos às cores
Chamo-lhe de “Ilha dos Amores”
(…)
(in, Luís Carlos dos Santos,
Poemas, A Ilha, Edicões Bubok, 2010)
Podemos dizer, então, que o nosso
cronista Álvaro Velho, um barreirense de Alhos Vedros, à semelhança dos outros
nautas que foram na Viagem do Gama, e seguindo o Canto IX dos Lusíadas, de Luís de Camões (1524-1580),
também terá entrado na tal “Ilha dos Amores”.
Como diz Agostinho da Silva,
“Aqueles marinheiros portugueses, aquela esquadra de Gama que volta, (…) é uma
Deusa de fora, é a força interna do mundo, é a máquina interna da História que
leva a Ilha dos Amores para diante dos navios portugueses. (…) Camões dá este
conselho pedagógico aos portugueses: «os meus amigos, se querem alcançar o Céu
na Terra, tratem do seu navio, mantendo-o em ordem, com disciplina a bordo,
porque um dia a Ilha dos Amores aparece» (…) É como se eles tivessem entrado em
alguma coisa na qual tivessem plena licença de serem homens inteiramente
livres. São as Ninfas, é a comida, é a paisagem, são os passeios, o encanto das
conversas, tudo isso há. Portanto, para Camões, um projecto de futuro inclui
uma inteira liberdade do homem e um inteiro gosto do homem pela apreciação dos
fenómenos.”(*) E mais à frente, continua Agostinho, “na Ilha dos Amores
acontece uma coisa muito curiosa, das tais Deusas, vem a possibilidade deles
descobrirem o futuro. Os marinheiros portugueses ouvem, da Deusa, aquilo que
será o futuro da História de Portugal. Ao mesmo tempo que estão presos a
fenómenos libertam-se da tal cadeia do Tempo.” (**)
Mas, deixando os Lusíadas e a
Ilha dos Amores, há um outro livro de Luís de Camões onde se faz referência a
Alhos Vedros e ao Barreiro. Trata-se de um Auto, ou Farsa, intitulado “El-Rei
Seleuco”, de data desconhecida e que só vem a público em 1654, onde Luís de Camões
satiriza relações conjugais da vida da corte.
Numa breve sinopse da peça, a
jovem esposa do rei Seleuco é também desejada pelo filho deste, Antíoco, de
forma que para evitar uma crise dinástica, o rei num ato heroico cede a sua
mulher ao filho.
Logo no início do Prólogo do Auto,
diz o Mordomo (que Luís de Camões deixa a possibilidade de na dramaturgia ser
substituído pelo dono da casa), uma das personagens da comédia: “Eis, Senhores,
o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quis representar uma farsa; e
diz que, por não se encontrar com outras já feitas, buscou uns novos
fundamentos para a quem tiver um juízo assim arrezoado satisfazer. E diz que
quem se dela não contentar, querendo outros novos acontecimentos, que se vá aos
soalheiros dos Escudeiros da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse
na Rua Nova do Boticário; e não lhe faltará que conte.” E, no mesmo parágrafo,
um pouco mais à frente: “Ora quanto à obra, se não parecer bem a todos, o Autor
diz que entende dela menos que todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto
é para praguentos, aos quais diz que responde com um dito de um Filósofo, que
diz: - Vós outros estudastes para
praguejar, e eu pera desprezar praguentos. E contudo quero saber da farsa: em que ponto vai
Lançarote?”. (***)
Posto isto, a pergunta que se impõe,
em termos da importância que este Auto terá para a história local, é a
seguinte: Porque será que, quem não se satisfizer com o que fica registado
nesta farsa, diz Luís de Camões, poderá saber mais destas satíricas relações
entre a alta nobreza, nos “soalheiros dos Escudeiros da Castanheira, ou de
Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em casa do Boticário”? O que
será que existia de comum entre estas tramas amorosas de representantes da alta
nobreza e Alhos Vedros e Barreiro? O autor parece relacionar os criticáveis
episódios dessa alta nobreza com Alhos Vedros, ou melhor, com os seus “soalheiros”,
lugares expostos ao sol onde se dá à língua sobre comportamentos menos próprios.
Naturalmente, que a partir daqui pouco mais poderíamos fazer do que simples
suposições, mas até pode ser que alguém mais documentado na investigação sobre
a história da nossa região, possa acrescentar algo de mais concreto que a nós
nos escapa.
A propósito da segunda parte da
citação que extraímos da obra, como descrevemos no segundo parágrafo acima,
parece-nos evidente que o autor se está a defender de eventuais críticas que
lhe possam trazer desagradáveis surpresas pela arrojada Farsa, críticas que, todavia,
são para si desprezíveis. Mas é evidente que esta é uma parte da história que
para nós, aqui, já menos nos interessa.
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(*)MENDANHA, Vítor, Conversas com Agostinho da Silva,
Pergaminho, Lisboa, 1994, pp. 74-76
(**) Cf., idem, ibidem, p.78
(***) LIMA, Augusto C. Pires de
Lima, El-Rei Seleuco, Luís de Camões,
Editorial Domingos Barreira, Porto, s/d, 3ª edição, pp.45-46.