terça-feira, 23 de junho de 2015

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A VISITA DO ZÉ MARIA 


Merece que recuperemos um registo que deveria ter sucedido ontem. 
Com a edição do jornal “Público” foi distribuída a aventura de Tim Tim, “Rumo à Lua”, desta primeira vez e simpaticamente, de forma gratuita. Trata-se do primeiro exemplar de uma série que englobará todas as histórias daquele repórter que supostamente, nas intenções do seu criador, consubstanciar-se-ia como que num arquétipo do cidadão europeu e um modelo para o mundo, em geral. 

Datam da puberdade os meus primeiros contactos com o assexuado herói que tinha por inseparável companhia a cadelinha Milou; foi com a saudosa revista que ia dos sete aos setenta e sete anos de idade que eu passei da colecção falcão e dos mandrakes e fantasmas para outras bandas desenhadas estética e literariamente mais elaboradas de que a dupla Black e Mortimer foi, desde logo, um enamoramento para o resto da vida. 

Não sei porquê, o Tim Tim nunca foi um dos meus eleitos. Li a larga maioria das aventuras mas, no género, preferia outras personagens mais divertidas, como o Asterix e o Lucky Luke – e quem é que se lembra do de Iznogood? – ou o já referido Professor Mortimer e a adolescência acabou por ter o presente da descoberta de, por exemplo, um Hugo Pratt. 


Seja como for, conto adquirir todos os volumes. As filhas do meu coração 
agradecerão. 



E não é que eu escrevi as linhas anteriores na presença de uma aranhazinha com fraldas? 

Uma vez que os pais têm presença marcada nos festejos das bodas de ouro do casamento de um dos tios, a Luísa que é a madrinha de baptismo, aceitou ficar com o Zé Maria que está adoentado dos brônquios e que assim tem no lar o sítio mais conveniente. Só por isso eu me vi forçado a tirá-lo da caminha desmontável onde dormia, quando uma motorizada mal educada o acordou em sobressalto. 


Como eu já tinha olvidado esta fase. 


E agora que lanchou e tem a fralda mudada, o Zé Maria, o mais novo dos três filhos do João e da Teresa ali está, na sala, tendo por companhia as brincadeiras da Matilde e o jornal da madrinha. 



Aí vem mais um mapa cor-de-rosa. 

Neste reino do homo maniatábilis (1) haverão as patuadas do nacionalismo possível de quem, em tão larga medida, depende dos subsídios da União, lá veremos uns jurarem defender melhor a pátria que os outros e depois das tronâncias – que hoje em dia já ninguém pode desembainhar a espada do agarrem-me se não eu vou – o indesejável acontece na mesma e logo qualquer outra causa oportuna propiciará que as nossas excelências se adaptem às novas circunstâncias e permaneçam no lugar do destino para onde corre o marfim. 


Capoulas Santos, o ministro da agricultura e pescas do Engenheiro António Guterres, já gritou alto e bom som, oh da guarda que o governo se prepara para aceitar a abertura das nossas águas territoriais à frota pesqueira espanhola que é só um dos colossos do ramo entre as economias da União Europeia.

É claro que ninguém tem dúvidas que os armadores nacionais terão dificuldades acrescidas com semelhante concorrência e, como eles alertam, desta forma, terão sido em vão todos os esforços que nos últimos anos têm sido feitos para manter os equilíbrios dos cardumes de espécies como a sardinha e o carapau. 

Provavelmente, às nossas autoridades resta pouca margem de manobra para outra coisa que não seja a aceitação da futurível realidade em causa. 
Pena foi que tivéssemos deixado desmantelar grande parte da nossa frota costeira, sem qualquer outra contrapartida para além dos subsídios ao abate dos barcos, ao mesmo tempo que aceitámos diminuir quer as armações para o mar alto, quer as correspondentes quotas de pescado. As pescas, dada a nossa geografia, poderiam – já para não dizer deveriam – muito bem ser uma das especialidades da nossa economia. 

Mas aqui repartem-se responsabilidades pelos intérpretes da nossa alternância partidocrática. 

Capoulas Santos é que seria dos últimos com propriedade para opinar nestas matérias. Então não foi o Engenheiro Guterres agraciado pelo estado espanhol e logo por recomendação de José Maria Aznar, seu homólogo, em Madrid que até é o líder de uma corrente política que, tanto por lá como no exterior, se opõe aos socialistas? 
É caso para perguntar o que é que eles estiveram lá a fazer. 


Ora acontece que esta é a sina de um país que vive de mão estendida para o estado. 
E para nos recordar isso mesmo, vai daí o Engenheiro Ludgero Marques reclama mais investimento público para o norte e, em especial, o grande Porto, o pretenso motor naquela região. 
Em vez de clamar para que os empresários se readaptem e invistam na investigação universitária e na conquista de novos mercados; em vez de alertar, desafiar e incentivar os correligionários, o homem que até dirige uma associação empresarial, ao contrário, reivindica do executivo que gaste mais dinheiro para reanimar o tecido económico daquela zona. 
Com a nossa fiscalidade, isto é uma delícia. 


Então e o que dizer do facto do grande desiderato nacional ser a bola, a propósito do que, só entre Braga, Guimarães e Porto, teremos dois estádios de raiz e outros tantos remodelados, com os custos acessórios garantidos pelo erário público. 
Aí tem o senhor engenheiro o reclamado investimento estatal. Se não gosta, tivesse protestado junto dos baronetes locais que tão forte finca pé teceram em torno daquelas despesas manifestamente desnecessárias e inoportunas. 
Tristemente, é esta a tal pronúncia do norte que se reúne em torno da távola da regionalização. 

Depois queixando-se que Portugal seja a pátria mais desgraçada entre os países desenvolvidos. 


Pois o espectáculo que ao mundo vamos dando é o de uma partidocracia oligárquica em que, nos dias correntes, um dos polos do seu núcleo duro tem os principais mentores de cabeça perdida e a propósito do escândalo do abuso e exploração sexual de menores, na Casa Pia, estamos a assistir a estertores que já não hesitarão em destruir o que possa restar de estado de direito nesta nossa terra ibérica. 
Já ouvimos dizer que os juízes formam uma corporação capaz de conspirar contra tudo e todos, inclusive a democracia; vimos zelotas, sempre sub-repticiamente, é bom de ver, defender que há personalidades que merecem um tratamento especial por parte da Justiça e escutámos intenções para a alteração de leis com as quais colidiram certos interesses instalados. 
É o resultado da vitória do homo maniatábilis ou, como eu escrevi há vários anos, é o nosso défice de democratas. 

Os grupos de interesses movem-se para que o poder se altere. Eles querem alguém de volta. 


Estaremos condenados aos ciclos das revoluções? 
O que acontecerá quando este sistema clientelar que vive paredes meias com a corrupção explodir de podre? 


As alegriazinhas do meu coração serão emigrantes? 



A Matilde gosta de pintar. 
Ali está ela, à minha frente, toda concentrada nas formas que vai fazendo com o pincel. 



E o pai aproveitou a aula de natação para esticar as pernas e ler. 



Hoje fico por aqui, apenas deixando a nota do telefonema da Margarida para as novidades. 

Rica vida, a do piolhinho. 


Daqui a pouco levaremos o Zé Maria de regresso à casa paterna e jantaremos por lá. 

Não acredito que regressemos cedo a casa. 
Há sempre mote para darmos à língua. 

Alhos Vedros 
 20/09/2003 


NOTA 

(1) Gomes, Luís F. de A. O DIÁRIO DA MARGARIDA – O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA, Vol. I, p. 98 


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 

Gomes, Luís F. de A., O DIÁRIO DA MARGARIDA – O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA, Vol. I, Dactilografado, Alhos Vedros, 2001

2 comentários:

Unknown disse...

Oi, Luís...

Que dizer do teu comentário?

Apresenta-se-nos AMOROSO no 'campo familiar' e das 'amizades'; ACUTILANTE e CIRÚRGICO no 'plano dos poderes' e dos 'interesses' instituídos', quer ao nível nacional, quer internacional!

P.S. - Que bom foi relembrar alguns dos 'heróis' da minha meninice...

Aquele abraço, companheiro neste «jardim à beira-mar plantado»!
Francisco

Luís F. de A. Gomes disse...

Viva, Francisco

As tuas palavras são sempre generosas comigo, mas a verdade é que pelo que vejo, do que então apanhei e escrevi, os sinais da tragédia que estamos a viver eram já visíveis nesse ano distante de dois mil e três. Infelizmente foi o que se viu daí para cá.

A banda desenhada, dos anos de escola primária a que o pessoal chamava de livros de cowboys, apesar de nas colecções haverem heróis que nada tinham a ver com isso, como era o caso do Mandrake de que gostava e devia ser igualmente do teu tempo, ou o Buck Rogers que seguramente deves ter conhecido.
Olha que muito haveria a dizer sobre isso e apenas acrescento a nota que alguns dos meus amigos de infância, passaram desses livros de quadradinhos, como também lhes chamávamos, para outras leituras que tendo começado pelas histórias do velho oeste - algumas escritas pelo Dinis Machado - passaram depois a romances mais sérios; sublinho que falo de rapazes que não tinham livros em casa e cujos pais não tinham hábitos de leitura. Isto tem muito que se lhe diga.

Essa do jardim é que nos mata, porque apesar de tudo, nós poderíamos mesmo viver assim; como eu costumo pensar, teriam que ser os noruegueses e os islandeses a pensarem de nós o quanto somos sortudos, pois tendo tudo o que eles têm, ainda acrescentaríamos a sorte de um clima que eles jamais terão.

Aquele abraço, companheiro
Luís