terça-feira, 3 de maio de 2011

FACES

A MESA DO COCA-COLA




Coca-cola é boa pessoa, apenas deseja viver sossegado e ter o suficiente para si e para os seus, sem pedir nada a ninguém e sem incomodar quem quer que seja.
Chamam-lhe assim devido à forma do seu corpo, pernas arqueadas e encimadas por um tronco que, a partir de ancas estreitas, se alarga nos ombros formatados pela labuta que muita foi.
Actualmente é carregador num dos mercados abastecedores da cidade, mas trata-se de uma ocupação transitória, tão só para ganhar algum dinheiro e não ficar parado.
Faz um ano que se instalou numa pequena casa em uma vila do Rio antigo. Ele, a mulher e os três rapazes que seriam quatro, se um não tivesse nascido com a sina de não passar do primeiro mês.
Farto do garimpo que cumpriu durante cinco anos em que apesar de tudo, arrecadou um razoável pé de meia, teve um bom pretexto para atirar a sachola a um canto e fugir dali, sorrateiramente, pela noite de fora.
“-É preciso ser muito macho pár’águentáá aquilo lá em Serra Pelada. Não é fáciu não.”
Heita que nem queria pensar naquele martírio, onde a menor rixa podia desenlaçar em morte e onde a crueldade e a ganância dos donos dos morros era tal que uma qualquer tentativa para surripiar umas pepitas podia ser punida pelas balas.
“-Veja você kús hóme quando encontrávam algumas pedra com ouro…” –Enfatizando com harpejos dos braços e dedos esticados. “-Ái áquilo páráva tudo. Os mandante diziam prá tôd’o mundo lárgár o trábalho e tôd’á gentche tinha qui sáir dáli pár’ó pátrão ir lá, sozinho, com os seus hómi dji confiança, prá tiráá aquilo qui queria. Ái voltava tudo á cávár á térra.”
Aquilo era um mundo de almas danadas.
“-É cláro qui também tinha gentche bôôa. É com’em tôd’á pártche, tem sempre gentche ruim e gentche bôa. Ahahah más áli tinha muito bicho ruim. Dji máis. Tchinha até bandido qui tchinha deitádo á cás’ábáixo pár’êscaváá búráco no quintáu.”
E um dia alguém o ameaçou de morte, Coca-Cola nunca disse porquê.
Dias depois apareceu à sua cara metade que continuava a trabalhar numa fazenda de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, tarecos para que te quero e lá apanharam o ónibus para o Rio de Janeiro.
Cata aqui cata acolá, uns dias debaixo da ponte e uma última noite no passeio, já sob a futura janela de suas pertenças, arrendou a um merceeiro aquele piso térreo.
“-Áqui sempr’é mélhó qui lá no engenho e no gárimpo.”
Com o jeito que a sua Jane tem para cozinhar, pensa abrir uma pequena lanchonete no bairro. Chamar-lhe-á “A MESA DO COCA-COLA”.
“-Veja só assim, umás lêtra, com luzinh’á vóuta, à mélhor comida só mesmo ná mesa do coca-cola. Não é légáu?”

Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 1995

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Ao ler a tua crónica, e lembrando algumas anteriores, o título delas podia ser "A face dos sonhos", porque tens a preocupação de mostrar sempre a parte mais importante da mente humana, aquela que mais nos distingue dos animais: quando tudo está mal e a realidade parece não nos deixar saída, encarniçando-se contra as nossas melhores intenções, ainda temos a capacidade de sonhar!

Também eu sonho com a minha lanchonete, com luzinhas encarnadas (pois então!), a piscar, a piscar...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Sim, poderia ser esse o título. Na verdade, a palavra chave é a esperança, pois é a partir dela que poderemos colocar a pergunta crucial: conseguiríamos nós, humanos, viver sem esperança? E a resposta é naturalmente negativa, até pelo facto de, como adiante dirá um jovem irlandês, apesar de tudo, este mundo é tão bonito.

Há quem sustente que o acto de escrever é doloroso. Pessoalmente sempre me diverti imenso quando escrevo e se tal assim não fosse certamente que não o faria. Contudo, jamais escrevi uma linha para me divertir ou, se quisermos, com o mero ou único desiderato de me divertir. Antes o faço para melhor entender o mundo que me rodeia e em que me insiro. Por natureza pessimista, a ficção sempre serviu não para fantasiosamente alindar uma realidade que se me pareça pouco edificante, mas sim para tentar encontrar na mesma, por mais ténues, aqueles sinais de esperança que nos podem manter um mínimo de sanidade mental e de vontade de persistir na tentativa de ir melhorando, por muito lentamente que seja, o quintal em que vivemos, o mesmo é dizer, mantermos a capacidade de sonhar que é possível fazê-lo.

Aquele abraço, companheiro
Luís