terça-feira, 24 de maio de 2011

FACES

AI SE O GOBINEAU CÁ VOLTASSE

O “Faces” –o título deve ser lido em inglês- é o meu livrinho de viagens. Não tem quaisquer pretensões de grandeza nem de originalidade e, no contexto da minha obra, não transcende o domínio de um pequeno exercício.
Na verdade, trata-se de uma pequenina compilação de historiazinhas que, na sua maioria, se reduzem a simples pinceladas. Desde logo isso acontece devido ao facto de eu ter viajado pouco. Necessariamente, daí decorre a escassez do material. Mas também a parca profundidade com que me capacito para olhar o outro, de coordenadas dispersas, também isso concorre para que as minhas toscas produções sejam pobres de número e impossibilitadas de, quanto à forma, poderem aspirar sequer às dimensões de uma novela breve. Dir-se-á que eu poderia ter esperado o avolumar da experiência e do conhecimento, desse modo me habilitando a um trabalho melhor e mais sábio. Era uma opção válida. Sem embargo, acontece que eu nunca almejei algo além de um treino. Se o seu resultado merece ou não a dignidade de uma publicação, logo o querido leitor o saberá dizer.
Ora foi precisamente uma tal escolha que me libertou da preocupação quanto a questões de originalidade. Os livros de viagens pertencem a um quadrante antigo e que muitos escritores cultivaram, tendo os maiores, entre eles, conseguido elevá-lo à categoria de género literário. Aí se aceita que o autor se isente da ficção e faça, da sua escrita, uma reunião de observações e derivações de carácter mais pessoal e até intimista. Quando me decidi pela lapidação desta peçazinha, comecei, inclusivamente, por palmilhar tais passos. Mas rapidamente me pareceu estar limitado a um diário de viagem o que eu, naquela altura, não estava interessado em fazer. Surgiu-me então a ideia de colorir rostos, por via dos quais me fosse dado transmitir os mundos que o meu entendimento construísse a respeito das realidades que viesse a ver e experienciar. Estava ciente que outras penas escreveram pérolas maiores, em face das quais, para este trabalhinho, jamais teria a leviandade de pretender a mais leve comparação. Mestre Maugham, por exemplo, é referência inigualável (*). No entanto, dada a contingência de estar bracejando em águas mais leves, sentia-me autorizado a sulcar outras rotas mais experimentais e, nesse âmbito, não considerando o inédito, a esboçar os contornos de vivências de outras paragens e civilizações. E, de acordo com os meus interesses particulares de escrevinhador, via preferível a singela procura da invenção de personagens de culturas distintas da minha. Com isso me exercitaria num determinado género literário, concomitantemente, esculpindo assim carnes em que ainda me não aventurara.
Tomei a decisão em causa no ano de mil novecentos noventa e um. Tinha trinta e dois anos de idade e menos de um terço das coisinhas que, de então para cá, vim a elaborar. Ainda que o meu projecto Sebastião Sorumenho começasse a ganhar vulto, o meu traquejo criativo permanecia nos primeiros e titubeantes passinhos. Consciente dessa realidade, só por insensatez teria deixado de percorrer os trilhos destas pequenas brincadeiras que, nestas palavras, me preparo para dar por findas. Afinal, já cheguei às vésperas de me despedir de Sebastião Sorumenho e à ficção que venho lavrando em nome próprio, posso muito bem juntar agora este que será o meu livrinho de viagens. O meu maior desejo é que estes rabiscos tenham o condão de proporcionar alguns instantes prazenteiros a quem sobre eles se debruçar. Se aí descortinar algum sumo que lhe faça sentir a humanidade mais perto, será, para este vosso servidor, o encanto e a certeza de não escrito em vão.




O que eu sempre apreciei nas viagens são as janelas e as portas que se abrem para a vadiagem, a despreocupação de poder deambular sem outras obrigações e compromissos que não os estritamente procurados, apenas nos submetendo ao objectivo de ver e viver com todos os sentidos despertos e atentos, prontos a propiciarem a compreensão do que nos envolve. Nunca percebi o gozo do turista acidental que vê os sítios que visita pelas fotografias que aí tira ou os filmes que faz. Talvez por isso eu tenha procurado realizar as minhas andarilhices como uma experiência total do corpo, tanto me importando com aquilo que está para lá dele, como com as manifestações das suas reacções aos diversos ambientes enfrentados. Se curo de conhecer as ilustrações bio-climáticas ou geo-morfológicas, ou se atento na humanização das paisagens, também me preocupo em observar a biologia que me é própria e como se adapta a coordenadas climaticamente díspares, tanto quanto ausculto os tecidos sociais e os tipos humanos que se me deparam e até meras ocorrências no quotidiano de vadio. Viajo para compreender os homens e, por tal a fim, ambiciono fazê-lo com os olhos e o cérebro bem acordados, mas também com o coração disponível pois dificilmente se entende quando, pelo menos, alguma empatia nos não envolve com o universo onde visamos descodificar o que quer que seja.
É claro que, uma vez mais, eu nada tenho de original. Muitas serão as pessoas que não andarão longe de pensarem e agirem como eu.
Provavelmente, eis a razão da vulgaridade em presenciarmos alguém narrando certos episódios que terá vivido, enquanto viajante, regra geral, motes bem vindos para jantares e serões de convívio, ou mesmo naqueles entrementes de gare ou trem em que é preciso conversar para ludibriar as horas. O mesmo acontecendo, certamente, com os escritores que, nos seus apontamentos de jornada, destacam as suas envolvências pessoais.
Bem, com toda a sinceridade, nada me impediria de traçar esse rumo. Os acasos da vida reservam-nos surpresas que, amiúde, se nos gravam na memória, quer, tão só, pelo engraçado de uma situação, como pela relevância que, eventualmente, possam repercutir no mais fundo do nosso próprio ser. Pois no decurso de uma viagem, pela nossa mais intensa sede de bebermos o ar que nos rodeia, são mais fartas as probabilidades para que tais encontros nos envolvam ou, se quisermos, para que tenhamos a sensibilidade de nos deixarmos tocar e, assim, em eles atentarmos. Alguns chegam ao ponto de raiarem as nossas classificações do mistério, como o que o Luís Carlos dos Santos, grande amigo meu, interpretou na carreira aérea entre Lisboa e o Rio de Janeiro, ao deparar-se-lhe a feliz coincidência de se sentar ao lado de um velho professor que era amigo chegado da pessoa a quem ele se deveria dirigir, em São Salvador da Bahia, e, além disso, íntimo e grande admirador da obra do pensador para quem o Luís tinha a delicadeza de funcionar como correio. Semelhante a esta, tenho conhecimento de outras casualidades de vagabundo e também eu, e em vários planos, tenho o meu modesto capital de comparticipação na empresa. Sem ter querido fazer dessas historietas e pequenos eventos o conteúdo deste meu livrinho, não resisti a terminá-lo, como o iniciei, com uma série de notas pessoais e, desta vez, relatando aquele que foi o mais agradável e inesperado contacto com que a minha existência me brindou. Teve lugar em Londres, no Natural History Museum, onde tive oportunidade de cambiar ideias com um importante cientista a quem conhecia e muito admirava pelos trabalhos no patamar da biologia do Homem.
A minha actividade antropológica é pública e é conhecido o meu interesse pelas questões do racismo, domínio em que tenho feito investigação e em que espoletei perspectivas singulares e, se não é imodéstia sustentá-lo, as quais posso até designar como inovadoras. Tudo começou por motivações meramente particulares que a encomenda de uma organização não governamental de cariz cristão fez prolongar e aprofundar até ao nível em que fiquei no livro a que dei o título, “Tira O Dedo Do Nariz”. Desde o primeiro momento, nas minhas conclusões, surpreendeu-me que a ultrapassagem daqueles preconceitos implique, afinal, medidas em âmbitos tão visíveis como o ensino do conhecimento científico ou as mais prosaicas regras de boa educação e relacionamentos diários. Nas minhas andanças da divulgação de teses anti-racistas que era outro dos desideratos que a citada solicitação laboral implicava, recordo até uma palestra que proferi na Faculdade de Psicologia, da Universidade do Porto, em cujo período reservado ao debate tive o prazer de escutar a uma veneranda anciã que, segundo disse, sem nunca ter necessitado de toda aquela elaboração teórica, sempre tinha assumido e praticado um comportamento contrário à segregação e, mais que isso, propício à mistura entre grupos raciais, para o que lhe bastou viver de acordo com os ensinamentos de Jesus Cristo. Ora o que me deixou desconcertado, foi, precisamente, a consciencialização de tão estreita via para evitarmos o racismo.
Olhando alguns mapas referentes à dispersão do Homo Erectus e do Sapiens Sapiens e meditando na naturalidade com que as distâncias geo-culturais haviam deixado fermentar os sentimentos de ordem etnocêntrica, uma vez mais sentia a mente embutida por aquela perplexidade. Repito, estava no Natural History Museum e, mergulhado num qualquer ponto indefinido das ditas cartas, soltava-me em razões que se prendem com as conexões entre as referidas atitudes preconceituosas. Eu estava completamente absorvido numa daquelas ocasiões em que a Lua está mesmo aqui sob os nossos pés.




Como se estivesse perante a voz da minha consciência, foi então que ouvi mais ou menos isto:
“-Não acha extraordinário como a nossa evolução, se, por um lado propiciou um fenómeno como o racismo, por outro lado nos deixa antever como a sua derrota definitiva assenta em algo tão simples e simultaneamente tão complicado como a mistura de raças que, na prática, acaba por se limitar a ser nada mais que o acasalamento entre indivíduos de etnias diferentes? O senhor não acha isso extraordinário?”
Não sei dizer mas tenho a certeza que olhei para trás, mais para me certificar de que estava ali alguém e que, dessa forma, aquela pergunta não era fruto da minha imaginação, do que, propriamente dito, para ver quem era. Lembro-me que respondi qualquer coisa de circunstância sem que de imediato tenha identificado o meu interlocutor. Ele é que insistiu e desenvolveu as suas ideias e foi a óbvia atenção que lhe dediquei que acabou por me trazer o reconhecimento da ilustre figura que aqui deixarei no anonimato. E não é que, inadvertidamente, eu estava ali cavaqueando com uma das minhas referências –se fosse adolescente, diria um dos meus ídolos- nada mais nada menos que a respeito da temática que nos unia? No momento entreguei-me ao diálogo e guardo, com especial carinho, as duas ou três horas em que usufruí de tão elevada e agradável sapiência. Só quando nos despedimos eu reparei na raridade daquele acaso e considerei que, pelo menos por uma vez na vida, também eu fora contemplado pela taluda.
“-Pois é, afinal o racismo são patetices que podem ser explicadas por via da análise científica. Ora esse mútuo conhecimento será tanto mais profícuo quanto as diferentes raças estiverem próximas.” –Terei eu respondido, sem realizar, por completo, o alcance das palavras do meu interlocutor.
Delicadamente, ele corrigiu-me e avançou com as propostas dos casamentos inter-étnicos.
Logicamente eu concordei e recordo que até acrescentei algumas críticas ao relativismo cultural, as quais me pareceram poder reforçar aquilo em que ambos estávamos anuindo. No entanto, ele persistia em defender que, na realidade, não era necessária tanta elaboração teórica, no que me terá feito recordar alguém.
Como escrevi, a nossa troca de impressões prolongou-se por um bom par de horas. Mas naquele preciso momento ele acrescentou mais ou menos isto:
“-Veja bem, na vida real as pessoas não estão preocupadas com esse tipo de considerações que não deixam, por isso, de fazer todo o sentido em termos das explicações científicas. Aí, o que funciona são coisas que façam com que as pessoas não utilizem as diferenças raciais para identificarem os outros. Nesse sentido, nada melhor que o amor, o impulso que leva duas pessoas diferentes a unirem e a quererem partilhar as suas vidas. Se um branco casa com uma mulher preta e dela tem filhos, não se lhes referirá como a sua mulher preta e os seus filhos mestiços. Limitar-se-á a dizer, como se dirá entre um casal não misto, a minha mulher e os meus filhos. Quando essa mistura for a normalidade e não a excepção, então os dislates do racismo só serão entendidos enquanto isso mesmo, simples dislates; provavelmente até virão a ser coordenadas que os humanos acabarão por perder e que apenas serão conhecidas enquanto factos e curiosidades históricas.”
Tão arguta e incisiva simplicidade de raciocínio apenas me induziu uma interjeição de concordância.
Ele aproveitou para continuar:
“-Nesse sentido é mais importante aquilo que você pode muito facilmente encontrar aqui, em Londres, do que a larga maioria da retórica política e científica que por aí anda a respeito do racismo e do anti-racismo.”




Nesse ponto eu já sabia adivinhar ao que ele se estava referindo. O fenómeno é demasiado expressivo para que até o mais distraído dele não tome a devida nota. Contudo, novamente ele foi gentil:
“-Isso mesmo, vejo que o senhor também reparou. É o que precisamente se vê por aí, casais mistos. É por essa via que, um dia, o racismo deixará de fazer sentido. E até sou capaz de prever que o futuro da humanidade será assim. A mistura racial. Quase que se pode dizer que, a esse nível, viajar em Londres, nos dias que correm, assemelha-se a fazer uma viagem ao futuro.”

Paris, 5 de Agosto de 1999

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Touché! Nunca li (feisses) como título do teu livro de viagens.

"Se um branco casa com uma mulher preta e dela tem filhos, não se lhes referirá como a sua mulher preta e os seus filhos mestiços."

Pouco faltou que Pedro Passos Coelho o afirmasse numa associação africana, para ganhar alguns votos, quando disse que "casou com África" porque a mulher dele é da Guiné-Bissau, acrescentando que a filha é africana.

Na guerra colonial, conheci muitos racistas que, diziam, "até" tinham amigos negros.

Na minha viagem ao futuro também não espero distinção de raças... apenas de competências, sem paternalismos!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Mas olha que o título sempre acompanhou os diferentes fascículos e lá
está a verde, verdinho, não tal qual veio ao mundo, mas pelo modo de
colorir do blogger. Seja, mas estava lá e se poderia ser lido na
portuga língua que tanta dor de cabeça a tantos dá, deve ele ser lido
na dos “bifes” cujas presenças lendárias tanto preenchem o imaginário
galego que D. Camilo pintou como ninguém. Porquê, então o termo
estrangeiro em idioma estranho? Ora esse é o tampo da caixinha que o
Leitor terá que abrir para ver para lá das letras grafadas e garanto
–“com firma reconhecida!!!”- que não será a de Pandora.

"Se um branco casa com uma mulher preta e dela tem filhos, não se lhes
referirá como a sua mulher preta e os seus filhos mestiços." Falta o
resto, falará simplesmente dos seus filho o que –comparação
impossível- é substancialmente diferente, para não dizer o oposto,
daquilo que Pedro que citas disse que foi, precisamente, o de se
referir à filha como… É tão bonita a inocência… Africana.
Ora isso, companheiro, isso é o tal política ou o socialmente correcto
que não é só causador de situações que dão para rir, como esta, outras
para chorar, normalmente enformando de uma pobreza intelectual do
género que levou à resposta que o Karl deu à “Filosofia da Miséria” do
Proudhon. Enfim…

E atenção que o contrário também é verdadeiro; aqueles que não tendo
amigos nem conhecidos pretos, mesmo não se dizendo, são racistas. E a
reciprocidade existe de todos com todos. È bom ter presente que a
Índia das castas, ou o sistema de castas que ainda submerge
mentalmente muitos indianos, é, intrinsecamente, racista.
Mas o mais curioso é a subtileza de um tal sentimento que, visto com
os olhos da razão, nem mesmo tem sustentação empírica pois, ao
contrário da crença –é de uma crença que se trata- existem populações,
neste caso humanas, embora não se possa falar em termos de raças. Mas
isso são minúcias científicas de que não vale a pena aqui falar e que
o tal cientista que deixei no anonimato remeteu para a desnecessidade
do dia-a-dia, em que as pessoas andam de um lado para o outro sem se
preocuparem com a gravidade e por isso, quando se miscenizam, não é
que deixem de ser racistas, isto é, não é que até deixem de olhar o(s)
outro(s), alguns outros, segundo o olhar dos preconceitos de ordem
física mas, não será difícil entendê-lo, começam a deixar de ter
matéria para o fazer.

Não sei se algum dia os homens virão a ser avaliados pelo seu
carácter; pessoalmente, não tenho assim tantas certezas quanto ao
futuro, mas sei que para mim é isso que conta, antes de tudo, cada um
de nós e aquilo que é, mais que pelo palavreado que sustente, por
aquilo que decorre dos seus actos que sempre serão a melhor medida do
carácter.

Será que é disso, afinal que o “Faces” nos falou? Coisa engraçada,
seria o que de melhor poderíamos levar dele.

Aquele abraço, companheiro
Luís