OS ÁGUIAS FUTEBOL CLUBE
A equipa, essa, formou-se pelo correr do tempo. Era um bando de miúdos que soía pousar numa das praças da vila, onde, entre outros jogos, com ou sem apetrechos mais que os corpos, era o futebol o que mais empolgava a pardalada que a ele se entregava de alma e coração, sem memória de necessidade de marcar encontro.
Aquilo funcionava mais ou menos assim. Com uma bola disponível num café vizinho, cujos proprietários tinham um filho que pertencia à trupe, os primeiros a chegarem ao pelado tratavam de agarrar no brinquedo para, de imediato, se entregarem aos chutos e às fintas.
Era Sol fugidio. Magicamente atraídos pelo cheiro da comida lá aterravam outros que se iam incorporando na jogatina, assim fazendo inchar as turmas até que um número razoável suscitasse a escolha das partes e, tudo feito segundo as regras, propiciasse o início do desafio do dia.
Não vou dizer que fosse o futebol o principal motivo daquele hábito de ali desaguarem tantos petizes. Na verdade, a maioria eram gaiatos de rua, isto é, sem qualquer sentido pejorativo, ganilha que por falta de condições domésticas eram forçados a passaren os seus tempos lúdicos fora de portas e, não só pela lei do menor esforço, não se decidiam a ir mais longe pelo que daquele largo faziam o seu ponto de encontro.
É certo que ao lado havia o jardim público da vila. Mas aí mandava o tio Epifânio, o encarregado da Junta de Freguesia pelo bom estado dos canteiros de flores e ele, o velho Bifanas, como os acessos de raiva faziam, entre nós, chamar-lhe, todo poderoso, jamais hesitava quanto a espingardar as correrias e, com isso, a excomungar veleidades, especialmente nocturnas, dada a iluminação, de utilizarmos os bancos como balizas para joguinhos de dois ou três sem guarda-redes.
Em todo o caso, era o desporto rei o preferido, não quero exagerar mas talvez o único a gerar unanimidades e apesar de todos os problemas a ele ligados, dos puxões de orelha, por via das queixas relativas a uma ou outra vidraça quebrada, aos esféricos apreendidos pelo poder dos mais velhos, apesar dessas vicissitudes, dizia eu, era o único jogo que nunca passava de moda e, ao contrário dos berlindes ou do peão, cada qual com épocas específicas, era aquela uma actividade que de sazonal nada tinha.
E, diga-se com justiça, até as miúdas gostavam de ver aqueles rodopios em busca do golo e quantos homens não pararam para admirarem os engenhos daqueles Eusebiozinhos.
Foi pela experimentação dos talentos e a descoberta das habilidades que as posições se foram definindo e não andarei longe da realidade se aqui escrever que, pelo menos à primeira vista, reuníamos um bom conjunto com todos os lugares preenchidos a contento.
Modo geral, todos éramos capazes de fazer fintar –como seria de esperar, uns mais desembaraçados que outros- e de passar as bolas à distância, tal como estávamos capacitados para remates de primeira ou a elaborar um centro minimamente aceitável.
Tínhamos horas e horas de treino diário que de nós faziam autênticos mouros de trabalho.
Para que não mace, entre os artistas escolherei apenas alguns. Dos outros, eventualmente poderei falar a propósito de outras coisas e em outras ocasiões.
O Almeida Dias, por exemplo, um lateral direito que em alguns momentos do jogo fazia de extremo e, geralmente, conseguia umas quatro ou cinco jogadas em que aparecia a centrar para a cabeça ou a bota de algum dos avançados ou de quem lhes vestisse a pele.
O Almeida Dias que foi precoce no abandono dos estudos e cedo entrou no mercado de trabalho, exactamente o mesmo que desde o princípio quis ser homenzinho e antes de todos deu o nó, sequer sem ter sido militar, aquele que hoje, depois de um começo como aprendiz, tem um negócio de tipografias que lhe oferece um padrão elevado.
Isto sem deixar de recordar o Toninho Careca, vá lá saber-se porquê a alcunha, o culpado de todas as derrotas, o guarda-redes por graça de cujas aselhices perdíamos e que na sua passividade de santo era esquecido em todos os momentos de glória.
António Manuel Azevedo Malveiro, o homem com a mão mais temível para jogar ao “palmo e cagada” (1), filho do dono do café, em tempos, ele próprio guardião de uma primeira equipa do Peniche, o Toninho que nada ligava à escola de que desistiu para ganhar a vida como empregado de balcão numa velha pastelaria da baixa pombalina, o keeper cujo ponto fraco eram as saídas, já que entre os postes tinha tiradas de se lhe tirar o chapéu.
Ou o Rui Madeira, o guias brancas, um mandrião com pés de ouro, verdadeiro exemplar do menino que acabou perdido em aventuras de Alibabá, vulgarmente um excelente armador de jogo de cuja arte saíam muitos dos golaços que nos faziam pular de alegria.
Pois foi com esse fermento que a equipa foi evoluindo para um clube.
Assunto sério, só poderia ter sido levado a peito e elegemos presidente e tudo, o Zé Augusto, o mais velho de todos e reconhecidamente considerado um indivíduo inteligente e responsável que, depois da escola industrial, entrou como operário para a Quimigal onde hoje ainda ganha o pão de cada dia.
Mas havia mais, muito mais.
O Luís Carlos, filho de comerciante em permanente abastança, possuía um sótão só para ele e as suas fantasias e, como é bom de ver, facilmente a camaradagem fez daquele espaço a sede do clube, onde, para além de alugarmos jogos uns aos outros o que só os mais afortunados pagavam, podíamos ostentar, numa prateleira, algumas taças pelo Toninho subtraídas às memórias paternas e que serviam para intimidar as visitas.
Posso mesmo evidenciar a realização de um torneio entre quatro times da freguesia que, sem o sabermos, acabaria por determinar a extinção do nosso, em função da selecção que o segundo lugar por nós alcançado provocou com a saída dos melhores de nós para os campeões.
Não foi isso que apagou aquela bianuidade de grande satisfação e orgulho com aquele a que todos os fundadores, em espontânea e esmagadora maioria que seria unânime não fosse o sportinguismo do Toninho, decidiram baptizar por “Águias Futebol Clube”.
Alvalade do Sado, 12 de Fevereiro de 1996