Tudo leva a crer que a refrega revolucionária passou e o país dá mostras de estar a entrar na normalidade da democracia, aparentemente, tendo atravessado a borrasca sem se desintegrar, ainda que o sobressalto tenha sido uma mudança de sociedade. Certo é que em Abril passado se realizaram as eleições para uma assembleia legislativa da qual emanou o primeiro governo constitucional que, por muitas que sejam as dificuldades, lá vai tomando conta dos assuntos públicos e das medidas que se impõem para que Portugal possa aceder ao patamar do mundo desenvolvido e, paralelamente, conseguindo com isso construir os mecanismos imprescindíveis a uma realidade baseada nos princípios da justiça social. Pelos vistos, a nossa comunidade, também ela, bolinou mais ou menos incólume em toda essa agitação e até foi capaz de dar conta da parte que lhe poderia caber no que toca a acolher os milhares de portugueses que a guerra civil em Angola e as independências forçaram a abandonar as antigas colónias e, por escassez de alternativas, a demandarem a metrópole em busca da reconstrução das vidas que, ao que se ouve dizer, na grande maioria dos casos, dramaticamente perderam. Demos trabalho a três famílias que para já se instalaram em casas pré-fabricadas que, no entanto, estão sendo substituídas por lares a sério numa ponta de terreno por detrás do bairro dos trabalhadores a que ficarão ligadas por uma rua entre o espaço devoluto e ajardinado que separa duas moradias da ala correspondente e onde, há muito, estavam edificadas as duas moradias que têm as vistas na direcção da estrada. Apesar deste movimento populacional repentino e massivo que, de uma maneira ou de outra, o tecido económico nacional terá que albergar e sustentar, há uma calmaria que se vai instalando ao tomar o lugar das marés vivas que invadiram as ruas e não sei porquê, estou confiante que daqui a uma dúzia de anos viveremos dias melhores e mais justos. Por isso penso que é melhor assim, em lado algum se viveu uma revolução permanente e ao mesmo tempo se criaram os meios que permitem redistribuir a riqueza gerada e as oportunidades para que os filhos dos mais pobres possam escolher o que acharem que é o melhor caminho para as suas vidas. Não sei muito bem o que possa ser o socialismo pois, pelo que se vai apurando, a verdade é que, pelo menos nestes últimos anos, com o movimento dos não alinhados, temos assistido à afirmação de vias alternativas, seja como for, pelo menos existem dois discursos distintos, um em torno do que podemos designar pela óptica comunista dos países socialistas, em crescendo de número no panorama mundial e o outro girando à volta dos partidos social-democratas e socialistas dos países da Europa Ocidental e do Norte, sendo ambos muitíssimo diferentes e correspondendo mesmo a modelos de sociedades antagónicas entre si. Com efeito, enquanto o primeiro se consolida numa economia estatizada e planificada onde a iniciativa privada e a propriedade foram praticamente banidas, depois de decretadas abolidas, o segundo, pelo contrário, conferindo especial atenção a estas que as leis protegem, alicerça-se plenamente na organização capitalista das actividades económicas que dessa maneira funcionam fora da alçada dos poderes políticos, à partida regulando-se pelas regras específicas dos mercados e apenas competindo ao estado agir no sentido de assegurar que tais entidades, particularmente as mais poderosas, não violem direitos daqueles que trabalham e simultaneamente controlar e gerir a repartição dos rendimentos globais que melhore a qualidade de vida em geral. Fico pois sem saber ao certo o que possa ser o socialismo uma vez que, mesmo descontando as perguntas de um lado e do outro, ao que parece, ambos têm atingido esse almejado nível de igualdade. Contudo, seja o que for, estou absolutamente convencida que o resultado do mesmo só pode ser medido, por um lado por uma situação de ausência de pobreza tal qual a conhecemos e da forma como se manifesta entre nós, portugueses e, por outro lado, pelo facto de os que por qualquer motivo não consigam abandonar o fundo da escala, terem, ainda assim, a possibilidade de verem os seus descendentes com acesso às mesmas chances que os outros, mais afortunados, para melhorarem as suas vidas. Fora disto não vejo que se possa falar de socialismo pois, pela simples acção da inércia, as desigualdades tendem inapelavelmente a impedir que os mais fracos possam ter e usufruir das oportunidades propícias à escolha livre de uma vida. Ora nós que por agora temos os principais sectores económicos nacionalizados, temos todas as condições para podermos organizar as coisas de maneira a alcançarmos tais objectivos. É então este o Portugal que a partir de amanhã abandonaremos para darmos início a uma viagem pelos diversos países europeus, com o propósito de visitarmos todos os pontos que, de acordo com os nossos interesses em geral, consideramos essenciais. Por causa disso, acabámos por ficar aqui até ao início deste novo ano; de acordo com a experiência que tivemos de visitar cidades a partir de Paris, para tanto utilizando a ferrovia, concluímos que teremos maior mobilidade, dado dispormos de todo o tempo que for preciso, se formos no nosso próprio meio de transporte. Matutámos e decidimo-nos por adquirir um furgão Volkswagen que nestes últimos meses, com a ajuda do Chico Sequeira que, apesar de há muito ter passado da sua posição de mecânico a dono de uma oficina e stand de peso e nomeada no ramo e na região, gosta destas coisas e ali deixou tamanho empenho e entusiasmo quanto o do meu amor que readaptou todo o interior como se de uma pequena roulotte se tratasse e pelo conforto e comodidades acrescentadas, do rádio ao leitor de cassetes para que tenhamos música, ao pequeno frigorífico e depósito de água para que tenhamos autonomia alimentar, sem esquecer a chauffagem para os dias frios, apesar de pouco entender destas coisas de automóveis, diria que fez ou melhor, diria que fizeram um bom trabalho.
O Vale da Esperança está mais lindo que nunca. Dá gosto ver as ruas limpinhas e todos os ajardinamentos tratados e decorados com flores que por ainda não ser Primavera permanecem em grande parte na latência das sementes e que tanto realce e perfume dão às fachadas das casas sempre arranjadinhas no que, aqui, na praça central, sobressai o casarão com os seus janelames e portadas antigas que o arvoredo que enverdece a colina e vai envolvendo a escadinha das nossas residências de piso térreo, embala ao sabor do vento. Da mesma maneira que é um encanto ruar pelo bairro dos trabalhadores onde os letreiros decorados dos serviços e uma ou outra loja que por ali abriram combinam tão bem com os vasos de flores que pintam as muradas baixas dos quintais. É tão fácil para as crianças seguirem até à escola que, nas traseiras do casarão, fica de frente para o centro médico com o seu espaço intercalar ordenado num parque de estacionamento a que os pinheiros mansos, ali plantados desde a primeira pedra, já vão conferindo sombra. Assim como é fácil seguir a pé ou de bicicleta para o trabalho. É tão bonito comprar o jornal da manhã e ter que dizer bom dia a rostos que se cruzam numa e noutra direcção, entrando por aqui e ali nas portas comerciais que estão abertas e a que um banco juntou um balcão e os correios um pequeno posto. E as actividades estão firmes, quer no domínio agrícola, quer no da agro-indústria que desenvolvemos quanto ao azeite e o tomate, ou o arroz e outros produtos alimentares, assim como nas cortiças expandimos as produções e abrimos outras unidades complementares e de suporte.
Sinto orgulho por ter contribuído para isto, sobretudo por isso me fazer sentir que a minha vida jamais terá sido em vão.