terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Brevemente passarão doze anos sobre a morte do paizinho querido que não teve a ventura – e uso este termo por estar certa que seria assim que o próprio veria a questão – de conhecer os netinhos. Como eu gostaria que ele estivesse agora entre nós, naturalmente por ele, mas no que me diz respeito, antes de tudo pelo vazio de afecto e carinho que a sua partida deixou irremediavelmente insubstituível, igualmente pelo companheirismo terno e culto com que me ofertava a possibilidade de ter ao dispor a conversa arguta e inteligente de ir ponderando os passos com o amparo solidário e meigo de uma voz mais avisada por mais experiente. Ficamos tão sós quando perdemos para sempre a presença dos pais que me parece ser apenas a partir daí que verdadeiramente passamos a estar apenas por nossa conta e risco. Seja como for, é precisamente por isso que também gostaria que ele pudesse ver, com a acutilância do seu olhar e ajuizar com a sensatez da sua maneira de ser e de ver o mundo, tudo quanto nós conseguimos alcançar nesta quinzena de anos. Sou capaz de imaginar o brilho da alegria do seu rosto sorridente quando a alma se aprazava fosse com o que fosse e estou segura que seria esse o semblante com que nos parabenizaria por termos conseguido materializar o que pode ter começado com o aspecto de um sonho em algo plausível, ainda mais, no fundamental, no respeito pelos ideais que o suscitaram. Do mesmo modo que nos manifestaria a concordância pelas opções e decisões que temos tomado que não teriam sido diferentes se da sua cabeça tivessem saído. Sobretudo tenho a certeza que ele concordaria comigo quando penso que para lá de tudo o que possamos dizer de abonatório do que já alcançamos em termos materiais nesta comunidade, está o facto de termos logrado organizar aquilo que eu, sem qualquer vaidade e absolutamente convencida da veracidade do que estou a afirmar, não tenho a menor relutância em qualificar como o melhor dos mundos para criar e educar os nossos filhos. Honestamente, para mim, acima de tudo o que possamos reivindicar por meritório, está este pequeno mundo de relações em que as crianças encontram um excelente meio para crescerem contentes e se virem a fazer pessoas de bem e não tenho a mais pequena dúvida que o paizinho seria a primeira pessoa a constatá-lo e a sentir-se satisfeito com esse resultado. Diz-se que o homem é um animal de hábitos e é verdade e é curioso observar como no nosso dia a dia os vamos ordenando e situando pelos diversos espaços que encontramos nas horas. Obviamente não estou a falar do trabalho que tem os seus horários a que não nos podemos subtrair, mas apenas àqueles aspectos da vida pessoal, familiar e social que estão para além dele. Pois terá sido por acaso que nos fomos acostumando a deixar o jantar como o ponto de encontro em que a família se inteira de si e se comenta e, nessa medida, o momento apropriadamente corriqueiro para que possamos transmitir os valores e as regras segundo as quais queremos conduzir as nossas vidas e pretendemos que os mais novos escolham guiar as suas. Da mesma forma, tanto eu como o Manuel nos fomos habituando a trocar impressões sobre todos os problemas que nos afectam para o que usamos, desde que tal se imponha, todo e qualquer momento em que nos seja dado estarmos a sós e é engraçado como rotineiramente fomos deixando os assuntos relativos aos miúdos e à educação dos mesmos para a intimidade da almofada, naquela hora que dedicamos à leitura se nada mais de relevante há a tratar. Tem sido aí que ultimamente me tem aflorado à memória a figura do meu querido pai e alguns episódios que vivemos, quer enquanto menina e rapariga me ia transmitindo as bases e os pilares do que tanto ele como a mãezinha convencionavam que deveria ser a minha educação, quer já na qualidade de mulher quando com ele conversei a respeito desse mesmo quadro de valores. Parece-me que estou a vê-lo, sentado no cadeirão de que mais gostava, junto da rádio, na sala, tinha aí os meus doze anos e acabara de ser apanhada em falso a propósito de um pretexto que arranjara para ter ido a casa de uma colega ao invés do esperado regresso a casa. É claro que me castigou e lembro-me bem que a punição consistiu no impedimento de passear até ao jardim na tarde do sábado seguinte, como eu muito gostava de fazer com uma amiga de peito de quem vim a perder o rasto e não mais tive notícias. Mas o que me ficou indelével na memória foi a observação que ele fez em torno da mentira, quando me fez ver que a minha atitude tinha sido tanto mais grave quanto era real a falta de necessidade da mesma e, com efeito, rapidamente compreendi que, na relação de confiança que os meus pais tinham comigo, apesar de compreensivelmente haverem situações em que me diziam não, não só se preocupavam em explicar muito bem as razões que poderiam justificar a recusa, como, mais importante, não era aquela de utilização sistemática e omnipotente pelo que não tinha qualquer precisão de usar a mentira para obter aquilo que eventualmente pretendesse. Afinal, o que é educar um filho? Antes de tudo ser rigoroso na definição de regras e justo na aplicação das mesmas, sem deixar de ter presente que aquele desiderato de rigor se materializa em princípios que a criança possa assimilar e cumprir, ou seja, não podendo aqueles assentar em condicionalismos tão absurdos que o infante teria que respeitar como, por exemplo, seria a proibição de brincar ao longo dos dias da semana por causa da escola. Com isso se desarticulam os cenários em que os mais novos se vêm forçados a mentir. Ora como deveria ficar contente o meu querido pai por verificar ser esse um dos aspectos que me levam a dizer termos conseguido erigir o melhor dos mundos para criarmos e educarmos os nossos filhos, uma vez que a miudagem aqui encontra toda a margem de segurança que lhes permite conduzirem os seus destinos juvenis sem a mais leve necessidade do recurso à mentira. E não será esse o primeiro nível em que poderemos aspirar a criar gente de bem? Não fosse isso muito e aqui ainda encontramos o meio ideal para que a gaiatagem tenha a sua fatia de crescimento fora da alçada das asas dos pais e das mães, com o que se podem medir e ganhar mais pontos para a auto-estima e auto-confianças imprescindíveis à formação de uma pessoa autónoma e livre.
Fico por aqui, os braços do meu amor são mais doces e mais importantes que estes registos.

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