Tenho uma pena imensa pelo pouco tempo que disponho para me dedicar a estes cadernos e já nem penso naquilo que poderia ser a disponibilidade para lhes conseguir dar um tratamento mais apurado e muito menos aprofundado, limitando-me ao lamento por sequer ser capaz de para eles dispor de oportunidades suficientes para lhes oferecer um acompanhamento regular. Mas é o que resulta de termos uma cultura do trabalho que sempre me incutiram em casa, segundo a qual jamais esperaria viver de outro modo que não fosse o de obter por essa via o sustento e o suporte de tudo o mais que eu e os que estão ao meu encargo necessitamos. Era a Éster que, amiúde, quando escutava certos desabafos rezingões de algumas de nós perante as múltiplas e esforçadas tarefas do árduo labor dos primeiros anos, por entre um sorriso jocoso e que ao mesmo tempo era a maneira mais delicada de reprovar a atitude e incentivar ao seu contrário, dizia, sobrolho franzido e o indicador direito esticado para a interlocutora, “-Ganharás o pão com o suor do teu rosto.” Não por isso, pois a minha educação e formação religiosa ficou-se pelos meses estivais da infância que passava em casa dos meus avós paternos e de não mais ter tido alimento, antes pelo contrário, ter sido afinal contrariada pelas referências que entre os meus queridos pais ia obtendo, acabou por secar, ao invés disso, por me terem ensinado que o trabalho é a fonte da dignidade por ser através dele, a partir dele que todos os bens são criados e toda a riqueza é produzida, também eu sempre concordei com aqueles que, tal como ela, pensam que todas as profissões são merecedoras de respeito e, consequentemente, por mais básico que seja um determinado desempenho, a começar pelo acto banal de varrer, ao mesmo tempo que cumpre um certo papel que contribui para o bem estar comum, deve ser visto pelos outros como prestigiante para quem o leve a efeito com a determinação de procurar com ele o melhor resultado possível e isto é válido para qualquer acção humana a este nível e não será o médico ou o advogado relaxados e negligentes naquilo que fazem que serão menos censuráveis que um varredor bêbado e displicente. A verdade é que em tal situação todos eles precisam dessa forma de dignificação que o exercício do trabalho e não o de uma profissão específica confere. É aquele e não qualquer destas que nos facultam o acesso ao estatuto de cidadão pleno e, por isso, seja engenheiro ou carpinteiro, professor ou cavador, todos aqueles que dessa maneira se esforçam para dar conta do seu dia a dia e dos seus, merecem igual respeito e consideração. Assim aprendi com os meus adorados e saudosos pais e assim, por mútuo reconhecimento, tanto eu como o Manuel ensinamos aos nossos filhos. E é por isso que em primeiro lugar surge o dever e, por muito que até desejássemos dar provimento à satisfação do mais insignificante dos prazeres, é àquele que temos de dar cumprimento e só depois nos poderemos lembrar de nós e daquilo que apenas a cada um é relativo e que nada mais tem que ter para lá de nenhuma explicação para a mais inerte das barriguinhas olhando o céu. Pois é daí que deriva esta minha impossibilidade de prestar maior atenção a estas páginas que, apesar de tudo, posso dizer que me têm acompanhado desde que aqui cheguei. Bem, afinal nem mesmo tive aquele espaço de reflexão necessário a procurar-lhes um plano ou qualquer enquadramento. Com certeza, não me recordo de alguma vez ter tido uma ideia do que poderia pretender escrever. Tantos anos passados, sou agora incapaz de repor com precisão o que me possa ter levado a escrever numa daquelas noites em que vivíamos mais ou menos a monte no casarão, isso lembro-me bem, à luz de um candeeiro a petróleo, à mesa do salão onde tomávamos as refeições. Provavelmente terá sido a vontade de ordenar as minhas próprias ideias a respeito de uma decisão que inquietava o paizinho e a mãezinha e de por essa forma ter como sossegá-los. Sei que acabei por me habituar a tomar estas notas e, desde então, não mais deixei de o fazer, aliás, os momentos em que aqui me sento a escrever transformaram-se na minha renda preferida de serão e disso não tenho a mais leve dúvida. Se me perguntassem sobre o que tenho escrito, não saberia encontrar uma resposta. Honestamente, nunca tive um objectivo específico de elaborar uma narrativa desta nossa aventura colectiva e comunitária, ainda que não exagerasse se pretendesse que a mesma, de facto, o requereria. Pode parecer curioso mas nunca li nenhuma das linhas que deixei para trás, contudo tenho para mim que mais do que uma qualquer forma de história deste povoado, aquilo que tenho registado e, bem vistas as coisas, aquilo que pretendia registar, são nada mais que as minhas impressões pessoais a respeito do modo como tenho apreendido toda esta experiência e as vivências em que se tem traduzido e aqui devo acrescentar que nem tenho qualquer preocupação de objectividade, mais do que isso, é essa minha subjectividade que me interessa e, seguramente, será ela que eu procurarei entender quando um dia, na velhice a que espero chegar, me sentar a ler estes cadernos e os a haver, naturalmente se alguma vez vier a fazê-lo. Seja como for, não deixo de me lamentar que não lamuriar pelo pouco tempo que tenho para me dedicar a este, digamos, passatempo e, mais não fosse pelo muito que certamente vou deixando por dizer. Tenho pena, muita pena, mas não tenho alternativa e a propósito não me quero esquecer hoje de anotar o prémio que a Viviana acabou por receber pelo louvável trabalho que ao longo de todos estes anos desenvolveu no âmbito da saúde pública da comunidade, quer pelas consultas médicas propriamente ditas que tem prestado e à maioria do povo sem olhar a pagamentos, quer pelo seu plano de medicina preventiva pelo qual todo e qualquer trabalhador e respectivas famílias têm acesso a uma avaliação regular do seu estado de saúde. Falam por ela os resultados da nula mortalidade infantil no povoado e, por exemplo, as insignificantes baixas laborais por motivos de doença. É como a electricidade de que daríamos imediatamente conta se faltasse, no entanto, tão relevante para o nosso bem estar como o mais produtivo dos braços. Ora com a conclusão do novo bairro, justamente atrás desse aglomerado de casario, numa ampla praça a que se acede por rua própria paralela ao limite de todo o irregular quarteirão e que passa ao lado da moradia e estabelecimento de café do genro do senhor Abel, lá está o edifício onde montámos o novo posto médico que, mais do que isso, está ao nível de uma pequena clínica onde não só poderemos ter consultas, receber primeiros socorros e até pequenas intervenções cirúrgicas ou ficarmos internados se tal for preciso, ainda temos uma pequena farmácia que aí se estabeleceu por acordo com um farmacêutico da Vila, um jovem licenciado que herdou a botica do avô e agora quer modernizar e, se possível, fazer expandir. Não é por estar envolvida, ser parte interessada, mas esta nossa epopeia merecia a pena de um olhar mais profundo e bem mais capaz que o meu.
8 comentários:
Bom dia, Luís!
A Viviana lembrou-me um médico amigo, que também é meu! E ainda não percebi porque não foi homenageado pela CMM - provavelmente porque não está inscrito em nenhum partido político, porque está demasiado ocupado com doentes para se ocupar dessas coisas! Assim, desculpa-me, mas presto-lhe eu hoje,aqui, uma mais do que merecida homenagem!
É o Zé Luís, que conheço desde miúda porque éramos vizinhos. A sua família, tal como a minha, sempre foi bastante modesta, pelo que ele teve que trabalhar bastante para conseguir o seu curso de medicina! É um cirurgião de renome, conhecido no Hospital Pulido Valente e Sta Maria como 'O Médico dos Pobres'. Fiquei a saber disto o ano passado, pelo pessoal do hospital, onde fiz uma pequena cirurgia! E já me aconteceu ser atendida no seu consultório perto da 1h da madrugada, porque enquanto há doentes ele não sai de lá! Assim como já me aconteceu enviar-lhe exames por email, porque estou longe, e ter a resposta quase de imediato, sempre com um beijinho de despedida e um 'Não te preocupes, está tudo bem!'
Ainda há pessoas assim! Que bom!
Um abraço amigo!
Amélia
E prestas bem a homenagem num duplo sentido. Antes de mais pelo o homem em si que merece carinho e reconhecimento, pela generosidade com que vive o dia a dia, mas também pelo próprio espaço em que o fazes e aqui não só pelo EG que também é de considerar, sobretudo pelo próprio contexto do romance que é a “Comunidade…” Desenvolvo apenas este último aspecto.
Este mundo inventado partiu, desde logo, com a citação do Singer que chama justamente a atenção para a relevância do pensamento ético, como ele diz, de não considerarmos os nossos interesses, só por serem nossos, como mais importantes que os dos nossos semelhantes. Mesmo que não o pense ou o conceba dessa maneira, é justamente isso que esse teu amigo – com A, naturalmente – faz ao agir da maneira que descreves. De certa maneira, é o princípio que, mesmo sem eles tivessem consciência disso, acabou por ser praticado pelos habitantes do Vale da Esperança na vivência dos seus quotidianos. Mas quer isso dizer que afinal é possível vivermos com uma atitude ética e não será por ela que iremos deixar de viver melhor, mais agradavelmente. Da mesma maneira que o mesmo significa a existência do teu amigo que consubstancia um dos dados empíricos que podemos reunir para sustentar que, afinal, não só há quem seja capaz de viver eticamente sem que tanto estiole os seus interesses pessoais, como é exequível fazê-lo, mesmo no contexto da teia de relações que se estabelecem neste mundo em que vivemos, sem para tanto tenhamos que abdicar de uma vida agradável para o(s) próprio(s). Vemos assim, com o bonito exemplo que aqui trazes que tanto teoricamente como na realidade poderemos manter a esperança de que a Humanidade continue caminhando na direcção de uma maior justiça na repartição das condições para uma vida agradável para um cada vez maior número de pessoas.
É pois precioso este teu contributo com o qual eu me regozijo.
É como afirmas, é bom saber que há pessoas assim.
Aquele abraço, companheira
Luís
PS
Amélia, peço desculpa. Apaguei o início da resposta que começava pelos bons dias e por dizer que o dia está mais uma vez bonito, o Sol banha de cores as bermas das estradas e dos campos e quando caminhamos, mesmo no passo apressado da vida, podemos ver que os pássaros andam numas algaraviadas... E como eles teimam em musicar a(s) nossa(s) passage(ns)m.
Peço desculpa pela falha de ter apagado o princípio do comentário, mas era mais ou menos como o repeti.
Um resto de um bom dia,
Luís
Por lapso só referi o nome pelo qual o conheço. Trata-se do Dr. José Luís Nunes! Fica o esclarecimento.
É bom que se saiba o nome dele. É bom distinguirmos essas pessoas.
A propósito do uso da escrita enquanto recurso para “ordenar as ideias a respeito de uma decisão que inquietava o paizinho e a mãezinha e de por essa forma ter como sossegá-los.”, deixo aqui uma pequena reflexão acerca da aprendizagem da leitura e da escrita por parte das nossas crianças. Aprendizagem que, para algumas delas, parece ser tão penosa… porque será?
Durante muitos anos, pensou-se que aprender a ler e a escrever dependia sobretudo das apetências psicológicas para tal… por isso se treinava a coordenação, os grafismos, etc, etc, etc…
Ainda hoje algumas pessoas pensam assim e obrigam as crianças a fazerem grafismos intermináveis, contornos que não são mais do que a “ditadura” do risco e outras coisas tontas que, infelizmente, povoam as nossas escolas, os nossos manuais e as nossas casas.
Mas a verdade é que a investigação sobre esta matéria nos indica que uma das condições favoráveis ao sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita é que a criança tenha construído um “projeto de leitora”, isto é, é tenha em si o desejo de ler. Pensa-se até que quando assim acontece, pouco importa o método de ensino. E eu, que fui uma leitora precoce (aprendi a ler sozinha ainda antes de ir para a escola), lembro-me perfeitamente de quanto queria aprender a ler para poder ler sem ajuda os livros de anedotas da minha mãe.
Como é importante ler ao pé das crianças, para que elas próprias construam vontade de ler… Como nos ensina Josette Jolibert, “é a ler que se aprende a ler e não aprendendo a ler primeiro”.
A questão que a Teresa levanta é da máxima relevância, pois a leitura é talvez a principal fonte do conhecimento. Muito haveria a dizer sobre a importância da leitura, do mesmo modo que muito haveria a dizer sobre a importância das sociedades sem escrita, o mesmo é dizer, sem leitura – que não o analfabetismo que é um fenómeno diverso e não comparável. Há até a este respeito, uma tese interessantíssima de David Abraham a esse respeito e de como a escrita afastou os humanos e as sociedades humanas da sua inserção na Natureza, mas isto seria uma conversa à parte.
Seja como for, à parte do que disse e mantendo-me na importância da leitura, tenho por sabedoria de experiência feita que a leitura e o desenvolvimento das capacidades para o fazer começa até na barriga da mãe, quando o feto começo a ouvir os sons do exterior e é dever dos pais falarem-lhe com calma e afeto para que mais tarde reconheça as suas vozes e se nesses momentos de ternura incorporarem a leitura, tanto melhor, aquele começará a habituar-se a esses ritmos e falas aplicadas. Depois há que ler para os miúdos desde sempre e se o fizermos bem, são muitíssimo fortes as probabilidades de espoletarmos gostos e interesses futuros na leitura. Creio que seria possível estabelecer correlações estatísticas entre os adolescentes e jovens bons leitores e aqueles a quem foi dado escutar boas leituras na infância; será a comprovação empírica do que afirmei. É claro que não sou pavloviano e portanto não poderei descurar a personalidade de cada um e em ela a apetência que daí resulte para actividades como a leitura – que não é fácil e sempre é muito trabalhosa, mesmo para um leitor experiente e eficiente – mas tenho para mim que esse gosto – aliás, como tudo o que é cultural – é moldável e precisamente a partir da maneira que expliquei e depois, apesar do reparo, não deixarei de dizer que apesar disso coloquei a questão na probabilidade de, na abertura das possibilidades a e nesse sentido estou convencido que a leitura de histórias em voz alta nas idades mais tenras será sempre o melhor incentivo para que uma pessoa venha a gostar de ler, a sentir o prazer na leitura e, em conformidade – se as circunstâncias o permitirem – vir a ser um bom leitor.
Que me diz disto, Teresa? Será que na sua experiência de Professora já se deparou com os casos que podem ser tomados como os dados empíricos que nos permitam sustentar as afirmações que fiz? Creio que é neste sentido que vão as palavras da Autora – que eu desconheço, de todo – que cita.
De facto, Luís, existem dados que permitem sustentar as suas afirmações. Há evidências de que as leituras da infância, quiçá da primeira infância e até do feto na barriga da mãe, se relacionam mais tarde com a leitura e a escrita (mais com a literacia do que com a decifração em si). Mas isto apenas Nos indica que é mais fácil aprender a ler e a escrever... nada diz acerca da importância da leitura e da escrita nas sociedades. Sobre isso, também eu tenho as minhas incertezas... como aliás as tenho acerca da própria escola. Mas, como diz, isso seria uma conversa à parte.
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