terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Eu gosto muito da Primavera. No fundo todas as estações do ano têm as suas particularidades e cada uma delas apresenta coisas de que gosto, como é o caso do Inverno em que a chuva bategando nas vidraças tanto me encanta, ou o frio do lado de lá das paredes me faz sentir o aconchego do calor de uma casa cheia de confortos, sem esquecer os mantos de verdes que se estatelam nas planícies que algumas cores decoram para prazer do olhar. Mas a Primavera tem aquela explosão das flores que tanta alegria transmitem aos campos e, ao final da tarde, numa amálgama tantas vezes indefinida nos perfumam a percepção do olfacto como se de um tónico para a alma se tratasse. A Natureza é algo prodigioso e mágico nos seus equilíbrios que ao leigo se assimilam como verdadeiros mistérios. Não estranha por isso que tantos povos tenham divinizado as suas diversas e diferentes manifestações ou o panteão grego tenha encontrado para as mesmas o respectivo deus responsável. O próprio Spinoza que lançou as bases da moderna filosofia política que vê no Estado o garante das liberdades e da protecção dos mais fracos e que, educado no judaísmo, certamente aprendeu uma leitura de Deus etéreo e, digamos assim, metafísico, acabou por deixar um ponto de vista que, partindo do deslumbramento perante tamanha harmonia, O assimilou justamente a ela. Pessoalmente não vou por aí, até por nem me ter formado com ou a partir de uma visão religiosa do mundo, mas não me deixo de maravilhar com as manifestações que, no contexto do todo, parecem ter sido planeadas como engrenagens de um mecanismo maior para que confluem no sentido do seu funcionamento eficaz. E de todas as efervescências que o aumento das temperaturas atmosféricas faz nestes climas temperados, o florir dos terrenos é talvez aquela que maior encanto me transmite, ainda mais quando uma invernia farta de água vem a desaguar, tal como sucede este ano, na exuberância das pinturas que o Sol, aquecendo um pouco mais, provoca na casca de terra do planeta. Caminhar entre veredas e valados mesclados de verdadeiras sinfonias pictóricas é desfrutar um espectáculo em que o espírito repousa e o ânimo se revigora e ultimamente, em que me vejo confrontada com a necessidade de ponderar e assentar determinadas ideias para que possa ordenar a preceito as matérias que terei que leccionar na disciplina de Filosofia, tenho gozado a surpresa suplementar do quanto me agrada entregar-me às cogitações que me preocupam, ao mesmo tempo que me vou deixando perder no andar, repousando aqui e ali a vista enquanto o cérebro se evade pelos emaranhados teóricos que me ocupam. Não sei porquê, mas já reparei que dessa maneira consigo um nível de concentração que não sou capaz de alcançar quando aqui estou sentada com o intuito de trabalhar esses mesmos assuntos e a verdade é que tenho a sensação que as melhores ideias me afloram justamente no decurso dessas passeatas solitárias. E foi o que ontem aconteceu com uma ideia que, para ser honesta, ainda não sei tratar muito bem, nem mesmo saberei dizer se a estarei a tratar convenientemente mas que, depois de a ter, logo a achei perturbante e que, de facto, me deixou um tanto ou quanto inquieta. Se bem que não seja por onde terei que iniciar o programa, certo é que terei que ministrar lições sobre moral e ética e estava precisamente a reflectir a respeito de como Kant considera a racionalidade como o processo pelo qual poderemos fazer derivar valores universais, quando dei comigo a perguntar-me se a dignidade humana não poderá ser considerada o primeiro de todos. Será a dignidade uma propriedade, salvo seja a expressão, inerente aos seres humanos ou um valor? A resposta no primeiro daqueles sentidos pareceu-me desde logo evidente se admitir que a dignidade, o mesmo será dizer o respeito que, em abstracto, toda e qualquer pessoa merece à partida é algo que, independentemente das culturas em apreço, é possível reconhecer para todo e qualquer indivíduo vivo ou que alguma vez tenha vivido. Nesta dimensão ela será assim um atributo que trazemos connosco. Contudo, não deixa de ser simultaneamente um valor, na medida em que podemos tomar um tal conceito como um guia de comportamento, quer em relação às nossas próprias pessoas, quer em relação ao nosso semelhante. E o que será então viver com dignidade? Tão simples como tratar de si sem ser um fardo para quem quer que seja, quer dizer, ser capaz de viver na assunção das suas responsabilidades para com o próprio e os outros. Ora é justamente por isso que é possível dizer que a exploração, ao furtar tanta gente à possibilidade de tratar de si por, pelo fruto do seu trabalho, as deixar em limiares de miséria, é uma imoralidade por impedir que dessa forma a pessoa não viva no completo da sua dignidade. Escusado seria sustentar que o respeito pela dignidade alheia é outra das condições para que possamos dizer que alguém leva uma vida digna. Até aqui tudo bem, mas a perturbação estava no virar da esquina. É que me perguntei de onde ou do quê poderemos nós fazer derivar essa ideia de dignidade? Com tanta maldade que a história humana tem revelado, como poderemos defender que os homens nascem dignos? Mesmo tendo em conta que os princípios morais não derivam da realidade dos factos mas antes do uso da razão, não seria isso uma negação desse princípio que pretendemos aplicar a todos os homens? De onde nos vem a dignidade? É uma pergunta simples que um qualquer aluno desde que atento, pode muito bem colocar-me. Pois foi aqui que teve início a perplexidade e de que decorreu a perturbação provocada por conclusões que, repito-o, pelo menos por enquanto, ainda não sei como lidar com elas. Bem, se eu fosse religiosa e aqui vem-me à lembrança uma conversa que tive há muitos anos com o Félix e a Éster –que será feito deles de quem não mais tive notícias? Será que estão bem? Faço votos para que assim seja- eu encontraria a forma mais simples para resolver o problema dizendo que ela nos é conferida por Deus. Ainda hoje tenho na memória as palavras daquele companheiro, para quem todos, por serem Seus filhos, nascem dignos. Acontece que eu não sou e há muito que deixei de ter práticas ou hábitos de pensamento religiosos, há tanto que, em termos de idade jovem e adulta, não errarei se escrever que nunca fui religiosa pelo que terei que me reduzir ao uso da razão para encontrar uma tal resposta e, em conformidade, procurar articular ideias em outras áreas, mormente na Filosofia e na Ciência e foi aí que tudo começou. Ora não podemos dizer que o Homem é digno em si pela singularidade e a irrepetibilidade da vida de cada um, coisa que é empiricamente verdadeira? Se nós considerarmos todos os acasos que são necessários para que nasça um determinado sujeito, desde logo o de os pais respectivos se terem encontrado mais tarde ou mais cedo ou sequer terem chegado a conhecer-se, fácil nos é compreender que resultamos de um momento único e irrepetível que é o da fecundação de um dado óvulo por um determinado espermatozóide; noutro momento, necessariamente com outro óvulo e outro espermatozóide, não nasceria uma certa pessoa mas outra diferente ou, caso contrário, todos os irmãos teriam que ser iguais entre si, coisa que na realidade não acontece, quando até sabemos que nos milhões e milhões de seres humanos que existem e já existiram na Terra, não há nem alguma vez houve dois iguais e nem isso se passa com os gémeos por mais semelhantes que sejam ao nível fisiológico. É pois essa singularidade irremediável que confere a cada indivíduo esse estatuto de dignidade. Pois aqui ocorreu-me a tal dúvida, se assim posso falar, que não só me intrigou como, tenho que o admitir, me perturbou. O problema é que se retirarmos a dignidade em função de sabermos que a vida é irrepetível, então teremos que estender essa conclusão aos restantes animais, em especial os mamíferos, também eles abrangidos por essa lei da Natureza. Sendo assim, os macacos, os leões e até as vacas e os bois cuja carne comemos, no prato, também serão dignos. É aqui que reside a perturbação que senti nas conclusões a que cheguei e sinceramente não sei como lidar com elas.

4 comentários:

Unknown disse...

Perdoar-me-á o autor desta crónica este pegar livre nas palavras
para dizer que suponho que não sejam por acaso todos os acasos que são necessários para que nasça um determinado sujeito, digno em si pela singularidade e irrepetibilidade da sua vida…
Mas se por acaso forem todos os acasos
direi então que é precisamente o frio do lado de lá das paredes que me faz sentir o aconchego do calor de uma casa…

Luís F. de A. Gomes disse...

Olá, Teresa

Não sei o quererá dizer com a negação do acaso do(s) próprio(s) acaso(s) mas não terei qualquer dificuldade em concordar consigo; basta ter em conta que , por um simples acto de Fé, temos como dar nome e corpo a esse acaso. É uma conversa bastante interessante, embora nunca seja fácil e isso por toda a carga de subjectividade e sobretudo emotividade que, infelizmente, tantas e tantas vezes evoca.
Mas deixe-me que pegue apenas num pormenor deste seu comentário para destacar um aspecto que, se quisermos ser pensadores com um olhar distanciado – se é que desta forma poderei ser capaz de me fazer entender – teremos que admitir ser empiricamente verificável – ainda que aqui, essa experiência empírica, essa verificação da falibilidade por via dos sentidos, se passe no domínio das ideias, mas são elas aqui os dados concretos de ilustração. Refiro-me à forma inteligente como resolve o problema, se o acaso é frio como parece, se de facto não há Causa para o mesmo e se ele é mesmo isso, só por si, então há a experiência da Vida para nos permitir compreender e enquadrar esse acaso, dar-lhe, por ventura, um sentido. Pois bem, devo dizer que também nesta perspectiva concordo com a Senhora e destaco as suas palavras porque me parece que delas poderemos fazer decorrer duas verificações; a primeira é que não precisamos necessariamente Dele para justificarmos a dignidade humana e, a partir dela, para conferirmos um sentido à Vida; o ser humano – afinal a quem Ele deixou a Liberdade de seguir o próprio caminho – já foi capaz de descobrir outras vias para chegar a esse pressuposto de um mundo de Paz e Justiça entre os homens. Não menos decisiva e relevante, a segunda será que não passa de uma infantilidade a pretensão de incompatibilidade de uma visão e leitura religiosa e uma visão e leitura científica do mundo, é não mais que não entender do que falamos quando pretendemos pensar a Humanidade e a Vida e o próprio Universo, em geral.

Agradece pois o autor este seu comentário, salvaguardando, no entanto que a narrativa é contingente e não podemos esquecer que a narradora, filha de médico, livre pensador e filosoficamente materialista, bem educada que foi em tal cultura, era ela própria uma céptica em termos filosóficos, área em que, com efeito, era academicamente graduada. Nem me parece que dela sequer pudéssemos dizer se tratar de uma agnóstica.

O que me diz disto, Teresa?

Luís

Unknown disse...

Quando falava da negação do acaso do(s) próprio(s) acaso(s), estava a pensar em tantos acasos irrepetíveis que, até por isso, nunca poderiam ser apenas obra de um acaso...
Agora estou para aqui a pensar quão sábio a pensar a vida é aquele que compreende e aceita com simplicidade as várias visões do mundo - algumas até ainda por dizer e saber. E digo que, de todas elas, a que mais me encanta é a que nos põe a pensar sem ser por acaso, porque com outros que nos acontecem e nos movem - esse é o caso das nossas conversas aqui no EG, em que a relação entre quem escreve e quem lê é tão dinâmica (estou a lembrar-me dos FRESCOS, por exemplo)

Luís F. de A. Gomes disse...

Sabe Teresa, a verdade é que a incerteza faz parte da nossa natureza, pelo que pretender ter uma certeza, qualquer que seja, é desde logo uma insensatez. E tão empobrecedor, não é?

O EG é um espaço de liberdade e partilha, pelo menos é isso que dele vão fazendo as pessoas que o fazem, logo o acaso aqui estaria no caso de haver gente que a tanto se dispõe. E não é bonito que assim seja?

Luís