O Sobrevivente, George Grosz, de 1944, Óleo sobre Tela |
Fugiam dele. Todos.
Apenas os pássaros se aproximavam num estranho ritual vestido de azul.
O velho – assim conhecido apesar de o não ser – tinha as pernas cobertas
de feridas, das quais escorria um hediondo e perturbador líquido, espesso e
verde.
Esperava-se dele um cheiro nauseabundo.
Mas, curiosamente, ficava ali apenas um odor surpreendentemente suave…
bom… e sempre diferente.
O velho parecia cheirar a todos os cheiros.
As feridas abertas que viviam nas pernas do velho – assim conhecido
apesar de o não ser – deixavam escorrer um repugnante líquido esverdeado e
cheiravam a todos os cheiros. Todos eram cheiros bons. Um de cada vez.
Fugiam dele.
Apenas os pássaros se aproximavam, num estranho ritual vestido de azul.
E no fim, todos voltavam. Todos.
Apenas os pássaros se elevavam ruidosamente num azul cumprido de
ausências.
Aproximavam-se lentamente.
Sem uma palavra, deitavam-se por ali. Calados… sentindo aquele cheiro,
num estranho ritual vestido de verde.
Revelava-se o aroma do tempo ali parado na espera morna da procura.
Um dia, o velho não veio. Ninguém fugiu.
Todos os pássaros caíram do céu. Todos.
Aqui, um pestilento cheiro a morte.
Maria Teresa Bondoso
6 comentários:
Fiquei por aqui a pensar, depois da imagem e do texto que seria interessante tudo vir acompanhado de uma pequena nota biográfica do pintor, ou pelo contrário, talvez se deva deixar ao estudo de cada um.
Quanto a George Grosz, um berlinense de leste nascido na última década do século XIX, pintor e desenhista, alinhado artístico no Movimento Dadá, e comunista alemão em fuga dos nazis para os EUA, onde se haveria de naturalizar, só voltou á terra natal na década de 50 do século passado, já numa Alemanha pertencente ao Pacto de Varsóvia e, portanto, ideologicamente encostada ao socialismo soviético. É caso para se dizer que foi um dos lutadores ideológicos que foi antes de ser, quer dizer, que viu a causa onde militou triunfar no país onde nasceu. Como seria interessante ter o seu testemunho póstumo de tudo isto...
Via Wikipédia.
Bom dia, Teresa e António!
Fascinante momento Estudo Geral hoje! A ideia que fica é que ambos, texto e pintura, foram feitos para se acompanharem um ao outro! Que forte RITUAL, simultaneamente visual e olfactivo... Muito Bom!
Um abraço a ambos!
Quanto ao Ritual gostamos muito de velhos e de pássaros azuis, como é sabido.
E temos esperança que um dia não seja mais necessário andar aos papéis, ao abandono.
Tal como temos esperança que da próxima vez já venha sem feridas. Mas sempre com muitas pássaros que se volteiam entre si. Abraços de todas as cores.
Pensei sobre a utilidade da nota biográfica do pintor. Resolvi não a incluir por dois motivos: Primeiro, a biografia do pintor podia "abafar" as palavras/ideias dos escritores, que são o motivo da rubrica REAL... Segundo, a maior parte dos pintores, aqui representados, não necessitam de apresentações. Dos outros, que precisariam de algumas palavras, a curiosidade dos nossos leitores, preencherá essa lacuna.
Como dizes, George Grosz foi, sobretudo, desenhador, mesmo quando pintava a óleo. As suas caricaturas eram tão contundentes que os políticos sem escrúpulos, os banqueiros e outros ladrões, quero dizer, homens de negócios ou militares começaram a ser conhecidos como "tipos de Grosz".
Um dos seus quadros mais conhecidos é "A Oscar Panizza", que mostra uma procissão de espectros, com a morte sentada no caixão a beber aguardente, enquanto um padre com cara de lua cheia brande um crucifixo...
Desculpem, já me alonguei nas palavras.
Abraço,
António
Há pessoas geniais. George Grosz foi certamente um deles. Por vezes, são os tempos que os fazem (aos génios). Por isso, nos tempos difíceis de agora, espero, olhando os de ontem, os que hoje hão-de surgir. Assim aconteceu ao ver o quadro que o António mais uma vez escolheu para acompanhar o meu texto. Obrigada.
Cá pra mim o velho que não o era é uma árvore e o líquido verde a seiva. Da vida. Talvez...
A pintura é, mais uma vez, óptima. Quase um auto-retrato já que sobrevivente(s)somos, cada vez mais, todos.
Abraços.
Manuel João
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