MANEIRAS DE ESTAR, DE SER. (III)
(...)
O
Quico chegou.
Num
ombro trazia pendurada a viola em bandoleira, no outro um saco de pano com
algum volume.Era um grupo de oito ou nove jovens adolescentes, alguns jovens adultos já, com um ar agradável, parecendo perfeitamente estruturados ou, pelo menos, nada neles sugerindo marginalidade ou descaminho.
O Tó acendeu o charro.
Aspirou umas passas de modo compenetrado e fez questão de o fazer rodar.
Só uma moça aderiu àquela proposta de comunhão, os outros declinaram o convite.
O Quico retirou a viola do estojo e começou a dedilhá-la.
Os outros procuravam no saco e começaram a distribuir alguns instrumentos de percussão e uma harmónica e uma pandeireta.
Um agarrou numa lata de coca-cola, vazia, e introduziu-lhe algumas pedras pequenas. Experimentou o som que poderia obter e terá ficado satisfeito com o resultado.
Ficou a postos para se integrar na actuação.
Quico começou a tocar “Dunas” desafiando “vão afinando as vozes”.
O grupo lentamente começou a cantar.
Primeiro um e de seguida, cada um a seu tempo, todos foram aderindo.
As vozes não eram desafinadas e após a primeira série de versos, a harmonia começou a estabelecer-se, as vozes confluíam, encontravam-se.
Os sorrisos afloraram os rostos.
Senti que sorria também.
De seguida cantaram “Wish you were hear”.
Afinados.
Seguiu-se “ Bairro do Amor”, “Nasce Selvagem”, ….
– a voz da moça de tranças destacava-se – o grupo harmonizava-se bem.
O largo enchia-se de música e de jovens a cantar.
Os arranjos, improvisados na hora, agradavam.
Agradavam-me tanto, que dei por mim a bater o pé e a trautear baixinho as músicas que iam interpretando.
Dois ou três dos jovens encontraram-me a olhar para o grupo.
Não me senti em falta e não me sobressaltei.
Eles perceberam que eu “estava lá” e sorriram.
Não para mim, sorriram apenas.
Passou um fulano de mota e gritou por cima do barulho do motor «drogados, vão mas é trabalhar».
A carrinha que vinha atrás buzinou ruidosamente várias vezes.
Ninguém ligou.
Passado um tempo, o Quico, que assumia algum protagonismo no estilo” líder aceite”, desafiou:
Agora vamos criar, ok?! Eu vou fazendo uma base de ritmo, quem quiser pode acompanhar-me. Quando quiserem podem começar. Originais, criação na hora, sem rede e sem ensaio.
E seguiu tocando.
A pouco-e-pouco todos se foram encaixando no ritmo.
O ritmo, por sua vez, encaixava-se algures entre o blues e o gospel.
As vozes começaram a elevar-se.
A princípio simples toada, som enquadrado na música instrumental.
Começou a Carol
A
cidade,
Uma
cidade carregada de histórias Faz-me lembrar qualquer coisa …
Depois o Tó,
Bairros operários
Deslocalizando a cidade,
Criando o subúrbio,
Depois a moça das tranças,
Dormitórios de gente subtraída a si mesmo,
Tornada escória,
Desperdício de um horário frenético
Desgastando o pulsar livre da alma,
Do sonho e do querer
Até apaziguar o ímpeto
Do que quer romper para concretizar,
Fazer nascer o que se almeja.
Depois outro,
Quando a ideia pondera,
Vagueia e se acalma
Desaguando num êxtase quase herético
Mas sem orgia nem cadeia.
Nesta altura voltaram atrás e elegeram um refrão.
A moça de tranças começou sozinha mas, os outros percebendo o sentido, acompanharam-na em coro,
A cidade,
Uma cidade carregada de histórias
Faz-me lembrar qualquer coisa …
Depois um outro de voz grossa,
Abrangência.
Casas pontualmente subvertidas.
Extramuros.
Barracas e casas clandestinas
Transferidas para o outro extremo da cidade.
Fora da cidade.
Alçado, matriz, arquitectos e população.
Voltaram ao refrão (compasso para pensarem?)
A cidade,
Uma cidade carregada de histórias
Faz-me lembrar qualquer coisa …
O Quico empolgava-se na guitarra “Boa”, soltou. Todos participavam na composição. Repetiram o refrão
A cidade,
Uma cidade carregada de histórias
Faz-me lembrar qualquer coisa …
Agora o Quico entra na cantiga,
Esteticamente estruturada
Na possibilidade de concretizar
A base e o corpo
Do edifício social.
O contexto coabita
Em elementos contrários
De um pós-modernismo
Por descobrir,
Por descobrir.
O refrão, de novo o refrão (reencontrar o curso do rio, organizar o pensamento),
A cidade,
Uma cidade carregada de histórias
Faz-me lembrar qualquer coisa …
Eu estava encantado.
Os jovens surpreendiam-me pela qualidade, pela riqueza da natureza de que eram feitos e exteriorizavam.
O maravilhamento eclipsara a noção de tempo.
Por dentro todo eu dançava e sorria.
Sorria sem disfarçar.
Eles perceberam e penso que terão gostado do meu bem-estar.
Acabava por ser uma forma de cumplicidade.
Quico percebeu que aquela aventura musical se esgotara
“Pessoal tá espectacular. Alguém apontou isto? Vamos apontar qu’isto tá muita bom. Mais uns toques e fica bom pró CD.”
O Quico voltou a tocar, uns ditavam, Marta (assim se chamava a moça de tranças) apontava.
Quando deram por concluída a tarefa, o Tó disse
“Quico continua. Vamos a outra.
(...)
(continua)
Foto: Carlos Baptista; Texto: Manuel João Croca
9 comentários:
Confesso que estou a ficar entusiasmada com este grupo de jovens e a sua Maneira de Ser e de Estar... parece-me que são boa gente e espero que venham a ser bem sucedidos, se não na música, pelo menos na vida! Veremos o que por aí vem...
Amélia
Amélia, bom dia e obrigado pelo seu comentário.
Eu também acho que este grupo de jovens é fantástico e delicioso. Se puderem continuar por cá sem serem forçados a emigrar, vamos tentar continuar a acompanhá-los e, na medida do possível, relatando o que for acontecendo.
Um abraço.
Manuel João Croca
Bom dia, Manuel João!
Há poucos dias alguém comentava comigo que 'Este país não é para Jovens!'... eu continuo a acreditar que sim, o que será de nós sem eles, sem a sua maravilhosa forma de ser e de estar, que nos contagia e nos faz sentir tão bem por dentro? Contudo já estou a ser atingida por esse partir, ao ver um dos meus ir embora... vou, certamente, ficar mais pobre!
Bom Domingo!
Amélia
Ainda fiquei a pensar nisto do partir... por um lado, não podemos negar o bom que é partir, o que se aprende indo, desbravando, crescendo... mas será que quando se parte de um lugar por falta de alternativas esse partir também só enriquece? Ou será que já se parte com a sensação de que se é pobre e acaba por só se viver a experiência pela metade? Porque se foi forçado a um ir que não se queria? Não estou bem certa...
Olá Amélia, bom dia.
Pobres e tristes de nós se este país algum dia deixar de ser para jovens. Tal significará que desistimos do futuro para além de outras coisas.
Também já conheço o peso da separação forçada. A minha filha emigrou para Inglaterra na procura daquilo que não conseguiu encontrar cá: a possibilidade de se autonomizar.
Partir é sempre bom quando corresponde a um desejo voluntário, quando se é compelido a tal será mais apropriado falar-se de exílio.
Como todos somos agentes da realidade, procuremos que de futuro, partamos apenas quando sentirmos uma vontade irreprimível de ir abraçar "o outro".
Um abraço.
Manuel João Croca
Pois é, Manuel João, temos a partida dos filhos em comum, tal como tantas outras famílias por este país! O que nos dá que pensar, não é? Que país é este, que investe na educação dos jovens (deveria dizer investimos, uma vez que esse investimento é feito através dos nosso impostos!) para depois os mandar partir? Algo de muito errado está a acontecer...
Amélia
Pois é Amélia e, ainda assim, devemos tentar arrancar essa mágoa do partir aos filhos que nos abalam para que eles continuem a acreditar que é possível algo muito melhor e que vai vir, vai chegar. Contrariar o azedume e a desilusão. Pensar positivo, não é?!
Abraço.
Manuel João
Bom dia, Manuel João!
Aqui vai um pensamento positivo sobre esta partida dos filhos: como o dinheiro para férias começa a escassear, sempre teremos a nova casa dos filhos para ficar quando formos viajar: o Manuel João em Inglaterra e eu em África! E matamos as saudades que eles nos deixam!
Um abraço!
Amélia
Vamos nessa Amélia.
Concordo, é uma boa motivação para atenuar a noção de distância.
Abraço.
Manuel João
Enviar um comentário