terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



É muito bom termos com quem falar, especialmente ao nível das indecisões quando, perante nós, os caminhos se bifurcam e nos vemos confrontados com a obrigação de decidir por qual deles haveremos de seguir e pouco sabemos a respeito de um ou de outro, nem mesmo temos como avaliar se temos ou não condições para decidir bem. É a angústia de que nos falou Kirkegaard ou, se quisermos, o princípio da angústia e nesses momentos em que o breu nos ofusca o olhar do pensamento, mais ainda quando nos sentimos a modos que impotentes para, unicamente com os nossos meios e capacidades, alcançarmos um mínimo de luz, nada melhor nessas situações que termos a disponibilidade de um ouvido pensante que se mostra disposto a dar-nos a mão e connosco partilhar o exercício das cogitações em voz alta. Foi o que sucedeu comigo que, depois de muito conversar com o Manuel, finalmente percebi como, estando a colocar mal um problema, natural seria que não só estivesse a arredar-me da possibilidade de lhe encontrar uma solução razoável como, em consequência, a posicionar-me erradamente em face do mesmo. A verdade é que para a incerteza da decisão tomada, como então disse o meu amor, a pergunta mais simples que se poderia fazer seria, qual a alternativa? E ele tinha razão, teve e continua a ter toda a razão, agora vejo-o, já o tinha percebido, mas cumprida que está a primeira parte da experiência, vejo claramente que não faz qualquer sentido começar por me perguntar se virei ou não a ser capaz de vir a ser uma boa professora, a partir daqui, no âmbito da Filosofia também, muito menos se irei ou não gostar de o ser, mas igualmente se conseguirei ou não exercer a profissão de maneira que os resultados possam ser considerados positivos, pelo menos satisfatórios. De facto ele estava a ser sensato quando sustentava que é precisamente aí que entra a tal pergunta de algibeira, qual é a alternativa? Na verdade não há, não havia e não há e essa é que é a realidade com que tenho de lidar. Há muito que ficou decidido que a escola que não havia e organizámos para os nossos filhos e que em boa hora abrimos à prole de todos os outros que aqui encontraram o ganha-pão, depois dos estudos das primeiras letras e dos saberes e aptidões correspondentes ao ensino primário oficial, se estenderia ao nível subsequente dos estudos gerais do liceu. Desde logo a questão se nos colocou no plano prático da exequibilidade. Para que os miúdos pudessem frequentar um tal grau de escolaridade, ver-nos-íamos na obrigação de pelo menos termos que os levar à Vila pois, de outra forma, teriam que ser eles a percorrer pelos seus próprios meios a dúzia e meia de quilómetros que nos separam desse ponto mais perto onde poderiam tomar os transportes até à cidade onde se encontra o Liceu Nacional da zona ou, para aqueles que o desejassem, a escola comercial e industrial. Bem, sempre nos poderíamos ordenar de tal modo que sempre houvesse alguém disponível e a jeito para fazer de chauffer e agora que até há várias famílias com carro, nem me parece que isso fosse muito difícil. Em última instância, nem mesmo seria algo do outro mundo se, por acaso, optássemos por fazer o trajecto directamente ao objectivo e todos os dias assumíssemos a obrigação de batermos a boa meia centena de quilómetros que, entre o cá e lá, teríamos que percorrer para que aos alunos fosse permitido o cumprimento do dever. Mas aí houve que ponderar o melhor para os interessados e na balança colocámos o peso das condições de tempo e bem estar físico e anímico para o fazer e fácil foi concluir que se as nossas crianças pudessem continuar a ter ao alcance das passadas a oportunidade de acederem à resolução das suas necessidades de aprendizagem, certamente teríamos ao dispor o melhor contexto para estudarem com eficácia de proventos e ainda terem vagar para as suas vidas de brincadeiras e de sonhos que tão importantes são na formação dos caracteres de cada um. O Quico ainda levantou o escolho do isolamento, da falta de convívio com outros miúdos da mesma idade e de como isso poderá concorrer para provocar mentalidades tacanhas e fechadas. Mas alguém lhe lembrou que não era bem assim, na medida em que ao frequentarem o mesmo estabelecimento de ensino que os filhos dos outros trabalhadores, isso lhes proporcionaria uma mistura em que poderiam ver e contactar os vários lados do mundo no que respeita às atitudes perante o ensino e a aprendizagem e a cultura de uma maneira geral e depois pelo facto de praticamente todos nós sairmos daqui, de vez em quando, até por termos origens familiares fora desta comunidade que criámos e mais agora que já podemos tirar regularmente os nossos períodos de férias, bem vistas as coisas, seria absurdo que algum dos nossos meninos ou meninas não conseguissem perceber que o mundo não se resume a esta aldeia e que há outras maneiras de viver para além desta. Pois foi desse modo que tomámos a decisão de dar continuidade ao plano de estudos que elaborámos para a primária e organizarmos um curriculum passível de ser reconhecido pelas autoridades competentes para os anos seguintes que, por motivos óbvios, se estenderão até ao momento em que algum dos nossos rebentos pretenda fazer o exame de admissão à Universidade se tal for a sua vontade. É claro que se tratou de uma opção devidamente ponderada e amplamente discutida entre todos uma vez que à partida a ninguém escapou as implicações que teria e teve, a começar pela requalificação de algumas pessoas que abandonaram por completo o trabalho nas unidades de produção e passaram a exercer a docência a tempo inteiro que é o que me irá suceder a partir do próximo Outubro, em que passarei a acumular à História que ministro, a disciplina de Filosofia e para o que comecei já a preparar-me. Contudo parece-me ser possível fazer um primeiro balanço da sensatez das nossas escolhas e não há quem o não considere amplamente positivo e isto olhando para a saúde mental e física com que a gaiatagem cresce, mas também pelo à vontade e níveis de autonomia, sem esquecer a cultura que, mais nuns dos que em outros, como seria de esperar, praticamente todos revelam e naturalmente o domínio das matérias e competências aprendidas que é bastante significativo em qualquer uma daquelas alminhas. Afinal para que serve um plano de ensino e aprendizagem? Qual o objectivo ou os objectivos que poderemos estabelecer para o mesmo? Ora a resposta, melhor dizendo, as respostas só podem recair na preparação para a vida, em todos os sentidos. E a vida que esta irã ter que enfrentar, quer o queiramos ou não, passa por aqui, por entre este mundo que temos vindo a construir e que, de alguma maneira, lhes queremos legar, ainda que todos nós estejamos conscientes que, uma vez adultos, podem muito bem vir a querer percorrer trilhos que não passem por aqui. Essa é a liberdade que lhes assiste e de que não os poderemos privar. Por isso, desde a primeira hora, ficou claro que pretendíamos organizar um misto de ensino teórico e prático em que às disciplinas dos saberes tradicionais, como a História e a Geografia, as Línguas e as Ciências, acrescentámos as técnicas e competências de artes tão básicas como a carpintaria ou a mecânica e a electricidade, de que ninguém se livra sem estar apto a trabalhar a madeira de modo a fazer objectos e outras aplicações com ela, da mesma maneira que seja capaz de olhar para um motor e compreender os seus mecanismos e a agir junto dos mesmos, como a ser capaz de compreender onde está o problema de uma instalação eléctrica doméstica e a resolvê-lo. Tudo isto sempre na companhia do ensino musical e desportivo e, desde há dois anos para cá, com unidades complementares no domínio do teatro e da fotografia que articulámos com as actividades culturais e recreativas da associação. No próximo ano lectivo em que o Adão e outros dois ou três, entre eles, uma rapariga, iniciarão os dois anos finais do liceu, teremos para aqueles que pretendam vir a seguir para o ensino superior e universitário uma formação virada para as ciências ou as letras, conforme os interesses de cada um e para os outros que queiram vir a abraçar uma profissão que passe por esse nível de estudos, algo que vá ao encontro dos requisitos gerais dessa mesma área. Por enquanto, nada indica que venhamos a começar esta vertente na próxima anuidade. O certo é que até ao momento estamos satisfeitos por ver os nossos entes queridos crescendo sabedores e responsáveis e, não tenho dúvidas em acrescentar, felizes. O tira-teimas será o exame nacional a que os mais crescidos terão que se submeter no final deste seu equivalente ao sétimo ano do liceu, mas até aqui, se bem que em patamares inferiores e, portanto, mais fáceis, os nossos alunos sempre se colocaram entre aqueles que obtêm as melhores notas. Esta nossa aventura tem nos levado ao improvável. Há muito que nos deixámos de olhar como jovens sonhadores. Como o paizinho e a mãezinha ficariam contentes se aqui estivessem.

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