segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (16)



Em Italiano, Jean-Michel Basquiat, de 1983, Díptico,Acrílico, lápis óleo, tinta e marcador sobre tela montada em suportes de madeira.

O MEU BAIRRO

Espreitei.
A parede branca do Mercado Municipal está especialmente bonita.
A noite pinta de cinzento o branco e os meus olhos sorriem.
As letras escritas na parede branca parecem desenhos.
São tão bonitas àquela hora…
De dia, a parede é só uma parede com letras escritas a estragar uma coisa que já foi muito branca. Passa a ser apenas o mercado onde uns miúdos estragam tudo com umas latas de spray.
Procuro captar o momento enquanto o luar ainda encanta a noite. Mais um pouco e essa penumbra esconde-se para morrer…
Pego na máquina, procuro a melhor posição e fotografo o momento.
O brilho do flash chega ao bar da frente onde cinco rapazes estão vestidos de não se ver. Roupas enormes, escuras, de tapar tudo. Gorros e carapuços. Todos iguais.
Um deles dirige-se à minha varanda.
Eu olho…
Ele segura uma arma…
Aponta-a…
Grita…

Um disparo finda-me.
Morri assassinada por um miúdo vestido de não se ver.
Roupa enorme, escura, de tapar tudo.

A verdade é que o meu bairro está cada vez mais violento.
Qualquer dia não consigo cá viver.

Teresa Bondoso

13 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom Dia Teresa e António!
Teresa, aposto que com a sua doçura e humanidade estes rapazes 'vestidos de não se ver' não passaram por si - a esses tenho a certeza que a Teresa vai marcando de forma a que queiram, orgulhosamente, ser vistos...
Depois também há a questão dos graffiti: António, que tal um apontamentozinho sobre o assunto? Seria interessante saber a sua opinião, como artista plástico...
Mais uma boa 2ª feira trazida até nós pela Teresa e pelo António!
Obrigada!
Amélia

MJC disse...

Bom dia Teresa.

Há tanta gente que se veste de não se ver para evitarem a humilhação de não ser vistos.

O hábito ensina-lhes a ser dissimulados, a camuflarem-se, a não serem ...

Felizmente não é essa a situação da Teresa. Tanto não é que tenho a certeza que o "assassinato" foi uma "cena" de uma representação.
De alguém que mais não queria do que um pretexto para se aproximar assim como quem mete conversa.
A Teresa estava a vê-los desde o princípio.
A "moldura" é, mais uma vez, excelente.
Parabéns aos dois e um abraço.

Manuel João Croca

A.Tapadinhas disse...

Amélia: Jean-Michel Basquiat nasceu em Nova Iorque, em 1960 e morreu com 28 anos. Teve problemas com os pais e nas escolas que frequentava. Acabou por ingressar numa para crianças dotadas mas com dificuldades de integração.

Viveu como sem-abrigo, extraindo da sua pintura o suficiente para investir em materiais e tintas. Na sua primeira exposição, Anatomia, conheceu Warhol com quem colaborou em diversos trabalhos.

Andy Warhol morre em 1987 e Basquiat nunca aceitou tal facto. O resultado foi a sua trágica morte, por overdose, em 1988.

Lembrei-me de Basquiat, porque há dias uma obra sua,"Museum Security (Broadway Meltdown)", de 1983, foi vendida pela leiloeira Christie's, em Londres, por 9,33 milhões de libras (10,82 milhões de euros)!!!!!!!!!!!!!

Mais uma vez a morte e a glória de braço dado...

Uma vida que é uma história com todos os ingredientes para inspirar a nossa querida Teresa...

Abreijos,
António

Unknown disse...

Realmente, uma vida extraordinária. A morte e a glória de braço dado parece ser uma coisa inevitável... talvez nasça uma história inspirada em Basquiat e Warhol. Não faltarão motivos para tal. Obrigada pelos comentários e obrigada pela imagem.

Amélia Oliveira disse...

António, obrigada pela explicação, sempre tão interessante... e Sim, Teresa, venha de lá essa história!
Peço desculpa pela insistência, António, mas os graffiti ficaram 'de fora': considera que são uma manifestação artística? Nem sempre? Nunca? Já vi alguns projectos interessantes desenvolvidos por colegas de Artes Visuais juntamente com alguns artistas plásticos...

Abraços!
Amélia

A.Tapadinhas disse...

Amélia Oliveira: Os graffitis de Basquiat são arte pura. Ele superou barreiras sociais com os seus quadros, com os seus desenhos, os objectos pictóricos, os textos e demais elementos figurativos, incluindo neles alusões a obras de arte famosas, numa mistura de raiva e beleza, plena de agressividade e sem convencionalismos.

Por ser arte é que, excluindo as referências à população de cor dos EU, podemos dizer que as suas obras não têm pátria: tanto nascem da cultura de graffiti americana, como podiam ser da pintura francesa (Dubuffet) ou alemã (Penk), para citar só dois exemplos.

Basquiat, por ter morrido tão novo, não foi apanhado pela engrenagem/sistema que tritura todos os criadores, tornando-os veículos conscientes ou inconscientes da cultura de massas...

A rotina é uma assassina (rima e é verdade) da criatividade!

Julgo que ficou claro o meu pensamento. Resta-me agradecer o seu interesse.

Bem-haja!
António


Unknown disse...

De facto, Manuel João, uma das coisas que mais me "mata" por dentro é ver miúdos a esconderem-se em roupas enormes, escuras, de tapar tudo. Todos iguais, entre gorros e carapuços...
E acho isso tão estranho e triste.
Morri, de facto, naquele dia, e morro novamente todos os dias em que encontro gente de vida para ser muito, já vestida de não se ver...

Luís F. de A. Gomes disse...

A Teresa consegue aqui aquilo que eu andei uma vida inteira à procura, criar a fusão de género e com tal elegância que todo o formalismo passa despercebido e lemos a peça e consideramo-la como se fosse de um dado género, ou outro se a relermos e em qualquer dos duas aquela se nos oferece bela, sem que seja necessário decidirmos que pertence a um ou a outro, pois em ambos percebemos que estamos diante de uma pequena delícia.

Li este seu texto como um poema e em ele encontrei a harmonia de um ritmo que, ao ser lido a preceito, cria uma musicalidade – estranha, mas pura e simplesmente bela, bela pela estranheza que nada mais é que a expressão da singularidade da mesma – que dá pano de fundo à ambiência noctívaga em que o enredo se desenvolve e não fosse isso, por si, muito, ainda me deparei com a doçura do olhar que se encanta nas pequenas coisas e com isso expressa um sentimento, uma alegria de receber a vida que, mesmo num sítio onde qualquer dia não se consegue viver, tem vontade de isolar o brilho e o perfume de uma corola cheia de cor(es), mesmo no chão mais enlameado de que uma vida invernosa derivado. Só que ainda há mais pensamento que se alcança na dialéctica que se estabelece entre o miúdo vestido de não se ver e a precariedade de quem qualquer dia deixa de conseguir viver ali; o que não poderíamos conversar a partir daqui, não é verdade?

Mas também posso ler este seu texto como um conto, ou na forma de uma história curta e se âmbito das ideias toda a problemática que aludi permanece, mais uma vez nos deparamos com a beleza, desta vez com a poética da linguagem. “A noite pinta de cinzento o branco e os meus olhos sorriem.” Não é esta frase, só por um si, um poema? Então e que dizer desta? “Procuro captar o momento enquanto o luar ainda encanta a noite.” Enfim, texto cheio de imagens metafóricas que nos dão gosto de ler, como se saboreássemos a dicção das palavras lidas. “Mais um pouco e essa penumbra esconde-se para morrer…”
Uma pequena delícia, como eu escrevi.
E gosto da solução da narrativa que é feita pela(o) morta(o), no que nos leva a podermos indagar sobre que género de conto temos pela frente. É a fusão perfeita.

Tanto quanto sou capaz de recordar, andei vinte e muitos anos à procura disso mesmo que a Senhora de uma maneira tão simples e justamente em isso tão bela conseguiu com esta delícia que, de pequena no tamanho, chega ao infinito da grandeza. Um texto precioso, uma peça de literatura sublime.

Aleluia mulher que tens alegria em viver.

Luís

Unknown disse...

Luís, nem sei o que dizer... as suas palavras encantam-me. Muito obrigada.

Unknown disse...

Então, cá vai a história. Talvez possa ser assim:
JEAN-MICHEL BASQUIAT



Pintava paredes brancas…

Tinha nos dedos uma urgência maior do que o pensamento. Uma pressa nascida de uma vida já gasta, em dobro, no seu tempo ainda novo.
Os desenhos passavam-lhe dos dias cheios de copos para as paredes brancas da cidade, para as portas mais velhas das casas que ali moravam e para os enormes corredores do metro.
Terminadas, as suas obras fugiam-lhe então para um lugar no qual escolhia não entrar.

Até àquele dia, tinha conseguido manter-se de fora. E gostava disso.

Afastava-se ligeiramente da parede, olhava longamente a vida escrita ali e seguia sem olhar para trás uma única vez.
Naquele lugar de confusão deixava o seu rosto transformado em pedra.
Ele, o que pintava paredes brancas, algumas portas velhas e os enormes e frios corredores do metro em Nova York, era um homem sem fim.
Por isso, a sua vida não sabia bem onde estava. E o seu tempo não tinha muitas certezas.
A sua casa chamava-se rua…
Os outros moravam lá e eram outros de verdade.

Um dia, de cheio, transfigurou-se o tempo. E ele.
Naquele dia, num dia sem cor, chegou um amigo que lhe coloriu o rosto de pedra.
Ele afastou-se ligeiramente da parede, olhou longamente a vida escrita ali e permaneceu leve naquele lugar de afeto onde intencionalmente escolheu ficar.
Foi feliz um instante.

O tempo ganhou certezas e a vida encontrou limites.
Deixou de pintar paredes brancas e de escrever a vida nos corredores do metro.
Agora pintava telas e chamavam-lhe pintor.

Passado algum tempo, os seus desenhos perderam-se na razão e ele visitou lentamente os lugares onde tinha escolhido não entrar.
Perdeu-se o instante…
O seu amigo partiu durante a noite e a sua casa ficou de novo vazia. Os outros voltaram a ser outros de verdade. O seu rosto perdeu a cor.

Não olhou para trás uma única vez. Deitou-se, apenas…
E injetou a morte nas veias.


Ser feliz nem sempre é uma coisa boa.

Amélia Oliveira disse...

António, sou eu que agradeço a paciência das suas explicações - como escreveu a Teresa num comentário um destes dias, 'As coisas que nós aprendemos neste Estudo Geral'!
Sou muito ignorante nestas coisas das artes plásticas mas gosto muito de aprender com quem sabe. Vou vendo umas exposições aqui e ali e gosto particularmente de trabalhar com quadros,com imagens, mas a um outro nível, como ponto de partida para a construção de histórias ou para abordar algumas temáticas com os meus alunos, o que resulta numa interdisciplinaridade muito interessante - afinal as áreas do conhecimento não são estanques, não concorda? Tenho visto também alguns bons exemplos de 'arte efémera' (espero que seja este o nome certo) de que tenho gostado, a nível local - talvez um dia destes nos possa 'falar' um pouquinho sobre isso? Acho um conceito extremamente interessante... já pensou acrescentar a actividade de professor às inúmeras actividades que já tem? :)

Muito obrigada! E abraços!
Amélia

Amélia Oliveira disse...

Um agradecimento à Teresa, que gostaria de partilhar - para além de ser uma Mulher Escritora fascinante, é uma pessoa de uma enorme generosidade: acabei de ver o meu FB cheio de maravilhosas imagens de Basquiat, juntamente com um documentário sobre o mesmo, que irei 'explorar' já de seguida! Adoro estas nossas partilhas, Teresa!
Muito Obrigada por ser quem é!

Amélia

Amélia Oliveira disse...

PS - só agora vi e li a sua história: Maravilhosa!
Que dia 'Estudo Geral'!!! Fez-me feliz, mas de uma Felicidade Boa!