terça-feira, 5 de março de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Sinceramente, continuo sem saber o que pensar a respeito do homem e nem o “-obviamente demito-o!” que pretenderia aplicar a Salazar me convenceu. Será que pensaria poder vir a alterar as bases do regime a partir do lugar de Presidente da República e apenas por via dos mecanismos institucionais e dos poderes que teria à sua disposição? Não me parece que tal fosse possível e a melhor prova disso é o facto de os pides terem voltado tão rapidamente a rondar por aí, neste pedacinho do céu que é nosso. Iria ele conseguir abrir a sociedade à vida e disputa dos partidos políticos e às liberdades em que a mesma se alicerça e se mantém? Perguntas que em face da derrota, quanto a mim, anunciada, ficarão por responder mas que eu persisto em não ser capaz de ver com desenvolvimentos positivos. É certo que houve uma enorme vaga de euforia em torno da sua candidatura e que depois de uma série de episódios mais ou menos pitorescos, até os comunistas parecem ter-se unido à figura que praticamente representou toda a oposição ao Estado Novo e não tenho a menor dúvida em tomar por pertinentes as suspeitas e acusações de fraude quanto aos resultados finais que deram a vitória ao candidato do regime. Seja como for, aquilo que eu diria ser o cesarismo manifesto nas atitudes e comportamentos do homem em relação à correlação de forças e as diversas individualidades que o apoiaram, deixa-me sérias reservas quanto à sua fidelidade aos ideais democráticos e ainda mais quanto à interiorização dos mesmos. Não viríamos nós a estar perante mais um daqueles casos em que um ditador se pretenderia substituir a outro? Bem, tenho que admitir que a esse nível, o Quico e outros, como o pacato e, por isso, insuspeito Artur, têm alguma razão quando me objectaram as reticências com o argumento que, caso tivesse sido eleito, o povo teria aí um papel determinante no desequilíbrio dos pratos a favor da democracia e que isso, efectivamente, poderia vir a ser um factor com que até o próprio general não teria contado aquando das negociações de apoios em que seguramente se envolveu. E a PIDE? Os militares e, porque não juntá-la a estes pilares da situação, a Igreja, iriam ficar quietos? Depois Humberto Delgado sempre foi um elemento do regime e desde a primeira hora pois, como é sabido, enquanto jovem oficial fez parte do movimento que, sob a chefia de Gomes da Costa, partiu de Braga para levar a cabo o vinte e oito de Maio que pôs um ponto final à república parlamentar e iniciou a ditadura nacional em que emergiu o salazarismo e o estado policial e sem partidos ou de partido único, pois a União Nacional é uma entidade política que exerce o poder, em que vivemos há mais de trinta anos. É verdade que, tal como defende o Manuel, ele viveu uma série de anos nos Estados Unidos da América e que essa experiência o pode ter convencido quanto às possibilidades de um mundo livre. Contudo não deixo de pensar se seria isso suficiente para criar um democrata e sobretudo se lhe daria a convicção necessária para afrontar o rol de defensores e fundamentos que o salazarismo tem ou de que se arroga. Com isto, de modo algum sequer estou a insinuar que possa ter ficado menos triste com a sua derrota. Estou apenas a registar que não partilhei a euforia que vi à minha volta e muito menos as expectativas quanto a uma mudança de fundo no país. Naturalmente lamento que o Contra-Almirante Américo Tomás, com a sua vitória mesmo fraudulenta nas urnas, possa agora personificar a continuidade de um estado de coisas em que Portugal permanece rodeado dos ventos de mudança e prosperidade que se fazem sentir na Europa saída da guerra, mas a verdade é que o regime está de pedra e cal e, avaliando pela reacção que teve a esta avalanche que agitou e encheu de esperança o quotidiano de tanta gente, dir-se-ia mais forte que nunca. E no contexto da rivalidade entre americanos e russos que o conflito na Coreia mostrou não se limitar às palavras, não continua Salazar a ser visto como um bom aliado na luta contra o comunismo? Como poderá este poder cair sem ser por via de uma revolução obrigatoriamente violenta? E alguém será capaz de defender a ideia de que um tal fenómeno possa estar eminente entre nós ou, pelo menos, seja concebível num prazo mais ou menos curto? Só em sonhos, pois se o defendêssemos, na realidade, seria pura fantasia. Em conversa de café, ontem, o Zé Pedro dizia esperar que o regime não volte a ser o mesmo, mas eu não acredito nisso e aquilo que vejo são os pides a incomodar os trabalhadores e a fazerem perguntas por aí –e agora sou eu que espero que o senhor Abel ou o Quico não tenham feito das deles e mesmo o José Pedro e o meu marido que, pela calada, também fazem das suas.
Já se avista o clarão com que a Lua Cheia se anuncia por detrás da colina. Vou ficar aqui a ver o espectáculo de como, a partir do alaranjado do fogo em que aparece, se transmuta em moeda de prata à medida que sobe pelo negrume do céu.
A noite é muito mais ruidosa que o dia. Apurando o ouvido, poderemos dar conta de múltiplos zunidos e grilares que no seu conjunto compõem uma verdadeira sinfonia de insectos.

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