terça-feira, 19 de março de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



É uma vergonha o que se passou e o que se passa e eu tinha bons motivos para temer o pior mal vi estas aves agoirentas voltarem a rondar por estas bandas. Sequer me ocorre um termo apropriado para descrever a situação pois nem a injustiça é suficiente, é algo superior a isso e de tal maneira que, mesmo um indiferente, alguém que sempre tivesse vivido sem que em alguma circunstância tivesse tomado partido, estou certa se sentiria incomodado e provavelmente revoltado com tamanha afronta que raia o indizível. É isso, o comportamento canalha dos pides é de tal ordem aviltante que mesmo aqueles que não se revejam na oposição que lhes é feita bem como ao regime que defendem e em boa medida suportam, se sentiriam enojados em face da clamorosa falta de sentido e indignidade do mesmo. Desde a primeira hora que senti francas reservas relativamente à candidatura do General Humberto Delgado à presidência e a campanha que, para isso, levou a cabo. Perguntava-me e pergunto-me como poderíamos confiar num homem como Salazar que já provou à saciedade estar alapado ao poder no pressuposto de se achar o guia providencial da sociedade portuguesa, missão, malfadada, direi eu, a que só a morte poderá pôr termo. Como esperar então que estas eleições não fossem fraudulentas e os homens da situação aceitassem de ânimo leve e de boa fé saírem derrotados do escrutínio e, por consequência disso, virem a ser arredados dos mandos e das mordomias que têm nas mãos? Poderia alguém com bom senso esperar honestidade de quem sempre revelou comportamentos tão repugnantes para com aqueles que se lhe opõem? Para mim, as respostas nunca deixaram de ser claras e precisas e mais uma vez acabámos por ter uma daquelas situações em que das boas intenções decorrem os resultados mais desastrosos. Como se poderia ter feito a coisa, não sei, mas era certo e sabido que as forças do regime iriam tirar partido da exposição que o envolvimento provocou para identificarem e prenderem mais uns quantos rostos entre aqueles que, no seu entender de zelotas sem escrúpulos, lhes causam problemas. Tenho que aceitar a simplicidade da observação do Artur que, perante tudo o que aconteceu, se limitou a dizer que se fez o que tinha que ser feito, de outra forma, ninguém teria concorrido e ter-se-ia perdido uma oportunidade para mais que denunciar o mundo de injustiça em que vivemos, manter viva a chama da esperança de lutar por um país melhor e mais livre. Neste sentido, vejo-me a concordar que algo teria de ser feito e alguém teria que avançar apesar de todos os riscos conhecidos. Mas sem que saiba explicar porquê e, repito, como, faltou a salvaguarda do depois; isto é, a certeza que haveria uma retaliação por parte da polícia política e tenho sérias dúvidas que isso tenha sido feito ou simplesmente ponderado. Custa-me um pouco ouvir a explicação do Quico, segundo o qual, comparando o sucedido com uma guerra, não há como fugir à realidade de ter que haver baixas. É uma crueldade que tenha que ser assim e ainda mais quando aqueles que caem estão inocentes em relação ao decurso dos conflitos, como foi o caso do que se abateu sobre nós. Bem que eu tive os piores pressentimentos assim que soube que uns pides tinham abordado um dos nossos operários que dois ou três dias depois acabaram por prender. Mas jamais imaginei que veria a minha casa invadida a meio da noite e o escritório completamente posto de pernas para o ar por energúmenos e ignorantes à procura daquilo que não existe e que seriam quaisqueres provas do nosso envolvimento em toda a movimentação de massas e de protestos que se desenrolaram a propósito da candidatura em causa. Felizmente tive o cuidado de logo aos primeiros sinais esconder estes cadernos em lugar seguro que, a serem lidos pelas mentes perversas desses ogres, se em nada nos comprometeriam naquilo que aqui está em apreço, certamente teriam matéria abundante para que os pides nos fizessem cair sob a alçada da sua violência e, pelo modo como esbofetearam e pontapearam o Manuel à minha frente e dos gritos de aflição dos miúdos que tudo testemunharam, só por ele lhes ter dito que não necessitavam de todo aquele alarido pois poderiam revistar a casa à vontade por estarmos de consciência tranquila, tenho a certeza que muitas destas minhas palavras lhes abririam toda a ferocidade para nos obrigarem a engoli-las. Quando na quinta-feira passada prenderam o senhor Abel para averiguações e depois levaram o Zé Pedro para um interrogatório em que manifestamente usaram da máxima violência, não foi o facto de o terem deixado sair neste Domingo que me libertou da preocupação que algo mais se poderia passar, contudo nunca pensei que ainda viessem buscar o Manuel que desde há quatro dias permanece incomunicável nos calabouços em Lisboa. Ai que raiva que raiva que raiva ter visto a aflição dos meus queridos filhos gritando impotentes pelo pai, perante a selvajaria de gente sem coração. E o que vai ser do meu amor? O que vai ser de nós? Tanto o José Pedro como o Quico disseram que à semelhança do que aconteceu com o primeiro deles, não haverá outro remédio se não libertar o meu marido, assim como o senhor Abel, na medida em que nenhum deles tem ou teve a mais leve responsabilidade no que quer que fosse em toda a agitação que envolveu aquela campanha e o rescaldo que se lhe seguiu. Eu é que não tenho conseguido dormir, de coração sobressaltado pelos meus meninos que têm andado aflitíssimos com a possibilidade de os pides matarem o pai. Como é triste viver nesta impotência.

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

E que vai ser do meu amor?

Vai ter um final feliz: não falta muito para o 25 de Abril!

O pior, pior mesmo, é que em 19 de Março de 2013 a lembrança desse dia dia está cada vez mais esbatida...

...no coração e nas mentes de quem o viveu!

Um dia destes, todos os que estão a tentar varrer esta memória, vão levar com o cabo da vassoura no toutiço! Ai vão, vão!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Como assim? Claro que falta muito para o fim do fascismo. Estamos aina no rescaldo da derrota do General Humberto Delgado, portanto, ainda em finais da década de cinquenta. Nas muitas águas que haveriam de passar sob essa ponte da tristeza, entre outros, haveria ainda de ser assassinado a sangue frio, o José Dias Coelho. Era pois negra ainda a noite que sufocava esses dias e ainda mais incerta qualquer probabilidade de o regime vir a desaparecer ou a transformar-se no sentido de uma sociedade mais livre e equitativa. A incerteza que a narradora expressa, mais não é que o resultado disso mesmo.

Mas já subscrevo o que dizes a seguir e tenho mesmo a opinião que devemos estar muito mais preocupados do que na realidade tudo aparenta que estamos. Há já hoje um manto de medo que, subreptícia mas paulatinamente está a cair sobre a vida quotidiana dos portugueses. Sinais e exemplos começam a ser percebidos e conhecidos por todos nós, a menos que não queiramos ver.

E gostaria, muito gostaria que a tua previsão batesse certo e o mais rapidamente possível, sob pena de perdermos por completo a própria independência nacional que os direitos, esses, as garantias de justiça social para os mais desfavorecidos, essas, tudo isso já está na enxurrada que nos varreu a democracia e agora leva consigo as suas bases que são as liberdades que, por sua vez, o estado de direito já os artistas que nos desgovernam tinham estiolado.

Quem me diria que chegaria a esta idade a escrever convictamente estas palavras.

E sabes o que me atemoriza ainda mais? É ter muitíssimas dúvidas quanto à possibilidade do cabo ser afinal a reconstrução do país e da sociedade no sentido de um mundo decente.

Estamos numa tragédia digna de um Sófocles.

Resta-me a consolação de saber que, pelo menos, somos duas picaretas para, dentro do seu raio de acção, é bom de ver, partir a pedra que for precisa e depois juntá-la para fazer de novo um castelo, como diria o Poeta.

Aquele abraço, companheiro

Luís