domingo, 17 de março de 2013




CRÓNICA DE UM AMANHECER DIFERENTE


Como o em volta se foi desertificando, povoou-se o interior com gente.
Com paisagens e cores, alegrias e dores, medos e outros sabores.
Movimentos reflexivos, meditações antigas gravadas na película branca e preta da memória-consciência, vontades, desejos e, gente, sempre mais gente chegando.
Gente chegando de diferentes maneiras.
Uns em algazarra de bebedeira, outros num roçagar de tecido fino.
Uns sorrindo num abraço, outros com intenções mal clarificadas.
Uns em pose de guerra na ganância e desembaraço, outros em grande paz com pão, flores e palavras cantadas.
Uns com vontade de construir coisas, outras sem vontade nenhuma, desiludidas, cansadas, retraídas no medo-medo ou no medo de serem utilizadas.
Uns traziam crianças, outros vinham com mulheres, outros, ainda, sozinhos chegavam
Ah, depois chegou também um cão.
Chegaram, apresentaram-se ali, e eu pensei: vou acender uma fogueira e sentar-me com todos à volta do fogo.
E acendi a fogueira.
E todos – todos que eram eu e eu que era todos - se sentaram menos um que estava muito agitado e permaneceu de pé.
E todos começaram a falar do ao que vinham, do que queriam e do que não queriam.
Passado um tempo, o que estava de pá, acabou por se sentar também.
O cão, vim a saber, chamava-se To Be.
Um cão com nome em inglês?
Fiquei sem saber porquê porque nem sequer perguntei.
Foi assim que começou a construção da paisagem que queríamos habitar, da terra que queríamos semear.
Continuámos a conversar no suceder das horas.
Cada vez mais calmos, tranquilos e convencidos que o futuro estava nas nossas mãos.
Quando um galo cantou anunciando a alvorada, ainda a fogueira ardia e a conversa continuava.



Manuel João Croca



Quadro de Luís Delgado (óleo sobre tela)
Colecção particular

8 comentários:

luis santos disse...


...que continue a conversa, convencidos que o futuro está nas nossas mãos. Abraços.

Unknown disse...

"Passado um tempo, o que estava de pé, acabou por se sentar também". Assim acontece quando a calma nos deixa entrar o futuro. E é tão bom deixar... Obrigada, Manuel João, pelo amanhecer diferente que me trouxe a alguns momentos iguais, porque também por mim vividos.

A.Tapadinhas disse...

Fiquei mais feliz depois de ler as tuas palavras e absorver as ideias e cores com que nos brindaste neste dia...

Parabéns aos dois culpados!

Abraços,
António

Amélia Oliveira disse...

Cabemos todos neste seu quadro de palavras, acho! Que bonito!

Um bom domingo!
Amélia

Amélia Oliveira disse...

PS- acho 'To Be' um excelente nome, uma vez que significa, simplesmente, Ser/Estar! Nada mais simples...

estudo geral disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís F. de A. Gomes disse...

Manuel João, um momento lírico de rara beleza, não só pela configuração da cena - o estabelecer da roda de uma fogueira - como ainda e sobretudo pela harmonia e significado das ideias subjacentes, da mundivisão subjacente. E, para meu gosto pessoal, devo ressalvar, com o encanto da fusão de género pois ficamos na liberdade de escolher entre um conto e um poema.

Com crónicas assim, os Domingos ficam sempre mais ricos.

Aquele abraço, companheiro
Luís

MJC disse...

Caro(a)s Amigo(a)s,

agradeço a todos os comentários.

O futuro que está nas nossas mãos e que todos construímos é agora ou até, talvez, já tenha começado antes.

Por vezes, neste tempos em que observados de determinados prismas poderemos classificar de insanes, precisamos sentar a tribo que cada um e todos transportamos à volta da fogueira para que nos aqueçamos e assentemos ideias, parece-me.

Por outro lado, lembro-me cada vez com mais frequência de uma expressão que ouvi a um grande escritor português contemporâneo quando entrevistado sobre os motivos que o levavam a escrever: "Para sobreviver" retorquiu, esclarecendo de seguido que não se referia ao sentido material da sobrevivência.
Não podendo (nem pretendendo)eu assumir a condição de escritor consigo, no entanto, compreender cada vez melhor o que ele pretendia dizer com isso.

Um grande abraço geral.

Manuel João Croca