segunda-feira, 25 de março de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (21)

O Velho que Fazia Cestos, Autor António Tapadinhas, 
Tinta da China s/papel CANSON, 32x24 cm

O VELHO QUE FAZIA CESTOS

Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.       
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam  pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o  coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
“Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?”
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: “Soltem-no!”.
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:
-“ A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco Euros. Por favor, compre duas latas de comida para a minha cadela.”
Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!

8 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom dia, António!

Sabe bem ler uma história que tem lugar em espaços que nos são tão familiares - cria-se logo uma certa empatia com o texto, não concorda?
E mesmo tratando-se de uma história triste, fez-me logo lembrar o meu Xico, que é o inverso (não percebi lá muito bem como se processou esta associação, mas também não é importante: aconteceu e pronto!)
O meu Xico é um Labrador gordinho e feliz, que nunca conseguiu aprender rigorosamente NADA! Mas é um verdadeiro 'Maria-vai-com-as-outras': há algum tempo fugiu de casa e provocou um despiste de um Mercedes novinho em folha(felizmente descobri que tinha um seguro que nem sabia que tinha!). Mas imagine que o dono do carro gostou tanto dele que queria ficar com o meu Xico apesar dos estragos avultados... e o Xico teria ido, não fosse a GNR tê-lo levado para o canil Municipal, o que levou a uma série de peripécias que não vale a pena contar... mas que nos deram muitas dores de cabeça...
Se voltar a encontrar a sua 'amiga' poderei ficar com ela para fazer companhia ao meu Xico - pode ser que lhe ensine alguma coisa...

Um abraço!
Amélia

Luís Cruz Guerreiro disse...

Gosto !

Unknown disse...

Mais uma vez, pensei como a dureza e a crueldade caminham lado a lado com o preconceito. Tanta gente a quem "não se deixa entrar" e tão pouco tempo para os salvar!
Gostei muito, muito.
Felizmente, também há pessoas assim... como a mulher cada vez mais magra, "sentada junto às palmeiras do largo da praça".

MJC disse...

Entre os humanos considera-se a lealdade um traço de carácter.
E para os animais, como o classificaremos?

Muito bom, também, o desenho.

Abraço.

Manuel João Croca

A.Tapadinhas disse...

Amélia: Gostei muito do seu comentário! Fica combinado: logo que me volte a cruzar com a heroína da minha história, vou convidá-la para ser guia do Xico!

Os cães, como nós, quanto mais marradas lhes dá o destino, mais aperfeiçoam o instinto de sobrevivência.

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luís Cruz Guerreiro: Vale um painel de azulejos... :)

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Teresa Bondoso: Admiro-a, já sabe!

Consegue ler nas entrelinhas, tudo o que escrevemos...

O que me preocupa é se faz parte dos seus poderes ler os pensamentos...

É que, às vezes, os meus pensamentos são pouco católicos...

...apesar da época que atravessamos!

Beijo,
António

A.Tapadinhas disse...

MJC: Seja como for que o possamos considerar, é um traço do carácter que nos conforta e nos mantém a fé no futuro do mundo...

...na sua globalidade!

Obrigado!

Aquele abraço,
António