O Velho que Fazia Cestos, Autor António Tapadinhas,
Tinta da China s/papel
CANSON, 32x24 cm
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O VELHO QUE FAZIA CESTOS
Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer
a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a
existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei
nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas
durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso,
indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que
envelheço, os dias ficam pequenos para
fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para
nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da
calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou
sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou
à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a
caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo
incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de
esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava
sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra,
dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava
vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se
voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo
que mais do que atingir o coração, me
abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
“Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior,
no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?”
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: “Soltem-no!”.
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem
tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal,
a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou
pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa,
como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele
junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas
que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava
a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda,
senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua
companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à
porta do supermercado:
-“ A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco Euros. Por
favor, compre duas latas de comida para a minha cadela.”
Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda
lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!
8 comentários:
Bom dia, António!
Sabe bem ler uma história que tem lugar em espaços que nos são tão familiares - cria-se logo uma certa empatia com o texto, não concorda?
E mesmo tratando-se de uma história triste, fez-me logo lembrar o meu Xico, que é o inverso (não percebi lá muito bem como se processou esta associação, mas também não é importante: aconteceu e pronto!)
O meu Xico é um Labrador gordinho e feliz, que nunca conseguiu aprender rigorosamente NADA! Mas é um verdadeiro 'Maria-vai-com-as-outras': há algum tempo fugiu de casa e provocou um despiste de um Mercedes novinho em folha(felizmente descobri que tinha um seguro que nem sabia que tinha!). Mas imagine que o dono do carro gostou tanto dele que queria ficar com o meu Xico apesar dos estragos avultados... e o Xico teria ido, não fosse a GNR tê-lo levado para o canil Municipal, o que levou a uma série de peripécias que não vale a pena contar... mas que nos deram muitas dores de cabeça...
Se voltar a encontrar a sua 'amiga' poderei ficar com ela para fazer companhia ao meu Xico - pode ser que lhe ensine alguma coisa...
Um abraço!
Amélia
Gosto !
Mais uma vez, pensei como a dureza e a crueldade caminham lado a lado com o preconceito. Tanta gente a quem "não se deixa entrar" e tão pouco tempo para os salvar!
Gostei muito, muito.
Felizmente, também há pessoas assim... como a mulher cada vez mais magra, "sentada junto às palmeiras do largo da praça".
Entre os humanos considera-se a lealdade um traço de carácter.
E para os animais, como o classificaremos?
Muito bom, também, o desenho.
Abraço.
Manuel João Croca
Amélia: Gostei muito do seu comentário! Fica combinado: logo que me volte a cruzar com a heroína da minha história, vou convidá-la para ser guia do Xico!
Os cães, como nós, quanto mais marradas lhes dá o destino, mais aperfeiçoam o instinto de sobrevivência.
Abraço,
António
Luís Cruz Guerreiro: Vale um painel de azulejos... :)
Abraço,
António
Teresa Bondoso: Admiro-a, já sabe!
Consegue ler nas entrelinhas, tudo o que escrevemos...
O que me preocupa é se faz parte dos seus poderes ler os pensamentos...
É que, às vezes, os meus pensamentos são pouco católicos...
...apesar da época que atravessamos!
Beijo,
António
MJC: Seja como for que o possamos considerar, é um traço do carácter que nos conforta e nos mantém a fé no futuro do mundo...
...na sua globalidade!
Obrigado!
Aquele abraço,
António
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