terça-feira, 12 de março de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Esta é daquelas ocasiões em que não podia deixar de me sentar à secretária para registar o sucedido. Não por ter sido a primeira vez que me ausentei do país e conheci terras estrangeiras que, de facto, não foi. Desde que podemos gozar as licenças de férias já fomos por duas vezes a Espanha. Primeiro a Toledo, onde permanecemos meia dúzia de dias e tivemos oportunidade de ver uma cidadezinha preciosa, cheia de recantos encantadores e de ecos da história antiga e recente dentro das muralhas que os muçulmanos deixaram quando ali dominaram ao longo de alguns séculos e tiveram um importante centro político e de saber e onde as memórias dos violentos combates da guerra civil ainda sangram e se impõem pelo ponto de vista dos vencedores, como naquele telefonema entre um pai e um filho que o Museu Militar exibe como prova da maldade e das atrocidades das forças republicanas, infelizmente, num acto que apenas serve para omitir a mesmíssima moeda do lado nacionalista vitorioso. Foi uma viagem maravilhosa que fizemos no carro emprestado pelo José Pedro em que acompanhámos o Gustavo e a Viviana que, com os seus filhos, seguiram no seu. Tal como foi a ida a Sevilha, por ocasião da feira de Abril, com passagem, por Aracena, onde almoçamos, no primeiro dia e visitámos umas grutas magníficas que muito entusiasmaram os mais novos, entre os quais, o Sebastião, o filho do meio daqueles companheiros, se encheu de perguntas a que o Manuel teve todo o gosto em responder. Gostei mais da grandeza plana desta cidade, tão importante à época de Cristóvão Colombo e as festas verdadeiramente imponentes, com as sevilhanas desfilando a rigor nos seus vestidos rodados e estampados e as bandeletes trabalhadas amparando os cabelos e os leques com as suas pinturas que se deixam ver à medida que aqueles se abrem e apesar de nada ter a ver com religiões, até eu concordei que vale a pena ver a procissão que o povo tanto acarinha, com a imagem impressionante dos que pretendem expiar pecados e penas vestidos com mantos brancos e as máscaras pontiagudas que apenas deixam espaço para a respiração e os olhos possam ver. E até já combinámos outra viagem por outras cidades mais a Sul, como Granada e Málaga que o José Pedro recomenda. Mas atenção que tanto numa como na outra há por lá muito pezinho que só não está descalço porque há o recurso das alpercatas que sempre disfarçam um pouco a pobreza que se vê e percebe em grande número de gente. Não foi pois a primeira vez que fomos ao estrangeiro, como as pessoas costumam dizer, mas foi a primeira vez que, para tanto, usámos a via aérea e assim voámos num moderno avião e é justamente isso que impõe a particularidade de um registo escrito. Eu sei que pode parecer infantil escrever isto, mas a verdade é que a ida a Bruxelas para visitarmos a exposição universal e o que, em três grupos diferentes e em outras tantas ocasiões, todos acabámos por fazer, logo desde o momento em que ficou estabelecido que aconteceria, começou por ser encarada como uma aventura fora do vulgar por implicar, precisamente, a utilização dos transportes aéreos e, naturalmente por isso, todos ouviram os conselhos preocupados da dona Noémia para que deixássemos os filhos em casa por receio de uma qualquer fatalidade e assim, no que nos diz respeito, pela primeira vez nos separámos dos nossos rebentos que, durante as duas semanas que estivemos lá, ficaram precisamente em casa do senhor Abel. Da cidade gostei, muito limpa e arrumada e muito bem servida por uma rede de transportes que as autoridades aproveitaram para modernizar a propósito de um acontecimento que reuniu povos e países praticamente do mundo inteiro que se fizeram representar em pavilhões, cada um mais digno de visita que o do vizinho e entre os quais, pelo que vi, teve especial afluência o da União Soviética se bem que, ao contrário do Quico que ali andou maravilhado e cheio de proselitismo palavroso, eu e o Manuel, bem como o Gustavo e a Viviana, tenhamos achado que não passou de um grande esforço de propaganda do regime, bem patente nos cartazes que acompanhavam imagens que nos queriam transmitir a visão de um povo feliz. Mas gostei muito mais de Bruges, com os seus canais e as suas casas antigas de tijoleira, ainda que tenha achado a praça central da capital mais elegante que a deste pequeno mas belo burgo. Em Antuérpia, onde os vestígios dos bombardeamentos da grande guerra estão praticamente apagados, é possível admirarmos pinturas de Rubens em algumas igrejas. Mas o que mais me empolgou foi o cenário humano de grande civilidade e fraternidade que se viveu nas alamedas da exposição, onde os naturais quiseram deixar uma marca de antevisão futurista com um edifício todo cromado e com a forma de um átomo de hidrogénio a que deram o nome de “Atomium”. Feito de esferas ligadas entre si por tubos que se percorrem por escadas rolantes e um elevador central, ali nos perdemos como simples crianças pela magia de um mundo de fantasia tecnológica e científica. Foi, para mim, o ponto alto de tudo aquilo. Mas devo dizer que apesar de toda a modernidade do aeroporto belga, onde aterrámos, depois de termos passado pelo inquietante formigueiro que sentimos no rosto durante a ascensão do avião e que chegou a assustar alguns de nós, para voltarmos a sentir as entranhas revoltas, então especialmente na barriga e passarmos ainda pelo sobressalto que me fez saltar no banco quando as rodas bateram no solo, o aeroporto de Lisboa nada fica a dever àquele em termos de eficiência e, com a sua esplanada debruçada sobre a pista, é até bem mais bonito. Seja como for, apesar de todos os cuidados com que as hospedeiras tratam os passageiros e de todo o requinte do serviço de bordo, não apreciei a viagem, mesmo tendo gostado de ver a superfície terrestre de tão alto e os pontinhos brancos no mar que, segundo um viajante mais experimentado, são os traços de espuma que as ondas fazem no meio do oceano. O barulho dos motores e das hélices é que é de tal maneira forte e omnipresente que as quase quatro horas e tal que demorou a viagem acabaram por ser um verdadeiro suplício auditivo. Não posso dizer que tivesse medo, mas quando o avião começou a elevar-se e a mim me pareceu que o estômago me sairia pela boca, não tendo chegado ao ponto de alguém desconhecido que ia no banco à minha frente e começou a gritar ai, ai, ai, não posso esconder que apertei a mão do Manuel com força e fechei os olhos e vi os rostos dos meus ricos filhos brincando na praça centrada pelo pequeno jardim onde erguemos aquilo que chamamos o nosso arco do triunfo e que consideramos o símbolo monumental desta nossa aventura e, por muito estranho que possa parecer mas foi tal e qual o que aconteceu, enquanto a aflição não passou, sucederam-se imagens no meu cérebro da ladeira ornamentada pelas nossas moradias salpicadas, em redor, do verde de árvores de fruto e das colorações floridas dos canteiros das frentes e que o depósito de água parece guardar, no cume da colina, agora rodeada de arvoredo numa das vertentes e um círculo relvado a demarcar-lhe a área e a entrada, bem como vi a vista da albufeira espelhando as nuvens e a sombra da pequena barbacã onde está instalada a piscina e vi também os arruamentos em l e o casario branco do bairro novo, ao lado da ala que o café e os outros estabelecimentos fazem e pensei que se morresse levaria comigo as imagens dos meus entes mais queridos e de um mundo que tenho contribuído para construir e onde me vim a encontrar feliz e cheia de vontade de viver. Depois o corpo voltou à normalidade e à medida que os minutos foram trazendo a primeira hora de voo, serenei completamente e creio ter usufruído bem do gozo das vistas que a janela me proporcionou. Mas quando finalmente voltei a pisar terra firme, confesso que suspirei de alívio.

4 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Continua a viagem, agora por terras de nuestros hermanos, com monumentos tão espectaculares que qualquer pessoa pode ficar boquiaberta sem sequer pensar em religião ou em arte...

No fundo, as viagens são um pretexto para perceber e falar de pessoas, dos seus sentimentos e das suas realizações...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

O teu comentário tem piada e na piada que tem implica duas notas.

A viagem é um tema interessante e tanto mais quanto é tão normal que se confunda a viagem – uma viagem – com simples passeios, ou passeatas, como foi o caso desta ida a Bruxelas que, pela andarilhice que envolveu – eles andaram de visita por outras cidades – até se aproxima mais de uma viagem, da tal ideia de viagem do que seria de esperar. Mas aquilo que eles fizeram foi justamente alguns passeios, ainda que em cidades estrangeiras e a viagem, uma viagem não é só isso. Esta é a partida de um ponto e a deambulação por outros, normalmente em roteiros – previamente definidos ou não ou, até, muito simplesmente casuais, pessoalmente já fiz isso – que nos levam a percorrer geografias e culturas e que, pelas circunstâncias em que decorre – actualmente já há viagens de tal modo organizadas em que os viajantes não têm que necessariamente conviver nas sociedades por que vão passando – assim pode ou não requerer o(s) contacto(s) com a(s) cultura(s) visitada(s) por via da(s) convivência(s) com os locais. É isso que é uma viagem que é sempre mais intensa e envolvente que um simples passeio. Nós é que temos por hábito dizer que vou de viagem de Lisboa ao Porto quando estamos a referir uma simples ida da primeira à segunda daquelas cidades. Pois, neste sentido, aquilo que os nossos heróis fizeram foi passearem por Bruxelas e depois, pelo que a mulher diz, por Bruges e Antuérpia. Ora, a descrição que ela faz é a descrição que seria de esperar em alguém como ela, isto é, é a descrição que qualquer outra pessoa faria no lugar dela, muito simplesmente dar conta daquilo que se vê quando se anda por aí e aí, num certo sentido, até poderemos acrescentar que a esse nível acabou por ser mais vadia que passeante.
Contudo, a segunda nota é que importa e com ela se chama a atenção para o facto de aqui a viagem ser apenas o acessório, aquilo que menos interessa no texto que se lê ainda que aí ocupe a maior parte do espaço. Relevante é o que se vê nesse espelho que é a função que aqui tem aquela. E o que é que se vê? Tão simplesmente como a comunidade afinal, ao fim de mais ou menos uma arroba de anos, já permitiu a melhoria das condições de existência ao ponto de os seus habitantes conseguirem tirar férias e até se deslocarem em terras estrangeiras. É fácil induzir tudo o que terá que estar por trás disso. Mas também lá está a imagem do sítio que, a propósito dos receios de uma subida de avião, acaba por ser descrito no seu aspecto. E, claro está, porque não é apenas da história sociológica que se trata – seria uma tristeza se assim fosse – lá está a alma das pessoas que até seguem o conselho da D. Noémia, o qual decorreu apenas do medo perante o novo e o desconhecido.

É pois tal como finalizas o teu comentário, no fundo, esta viagem, digamos assim, foi um pretexto para falarmos da comunidade que é, bem vistas as coisas, o principal herói deste romance.

Aquele abraço, companheiro
Luís

Amélia Oliveira disse...

Gostei da viagem! E fez-me recordar um texto que li há algum tempo sobre 'e-travelling' - será que com este avanço tecnológico desenfreado, em breve passaremos a essa forma de viagens? Serão os computadores alguma vez capazes de transmitir os cheiros e os barulhos e as gentes a um viajante sentado no sofá de casa? O dito texto previa que sim e muito em breve - penso que foi escrito logo a seguir ao atentado de 11/9, o que lhe dá um outro sentido...

Have a nice day,
Amélia

Luís F. de A. Gomes disse...

Claro que também passaremos, como, afinal, já o vamos fazendo por via de outros media, mormente a tal caixinha que mudou o mundo e não me parece que haja mal em isso, pelo contrário, tenho para mim que serão formas complementares de viajar e isto independentemente de se conseguir algum dia essa aproximação de que falas e da forma em que o colocas entre a realidade o seu registo seja em que suporte for. De maneira que isso são – serão – potencialidades que se abrem e que, dependendo do uso que lhes dermos como é evidente em todos os casos de uso de tecnologias, se as usarmos no devido sentido, muito contribuirão para aproximar as populações do planeta e, por essa via, poder confluir para mais um contributo para a desacreditação e diminuição de preconceitos como, por exemplo, todos os que decorrem da natureza etnocêntrica. Um mundo melhor será, com isso, possível.

Já quanto à parte final do que escreves, diria que sou tentado a subscrever o outro sentido que referes, se o entendermos no âmbito das necessidades e interesses militares, por exemplo, pois, se um tal avanço tecnológico fosse vital para aquelas, o mais provável seria vir mesmo a acontecer. A conversa que não implicaria o desenvolvimento desta minha última observação. A guerra e o desenvolvimento tecno-científico – subo um degrau em relação a considerarmos apenas a tecnologia – que a Humanidade tem conseguido. Poupo-me por condicionantes de espaço e depois teremos outras oportunidades mais exequíveis para o fazer. Mas aqui, publicamente, a este respeito, deixo apenas a nota do pensamento do saudoso Sagan para quem a conquista espacial poderia muito bem substituir pacificamente aquela para os propósitos de que falámos. Outra conversa de longa duração e prenhe de interesse e seguramente profícua em resultados enriquecedores.

Gosto que tenhas gostado da viagem, pois aqui temos outra, neste particular pelas ideias que o a propósito de uma viagem nos surgiram. Saúdo-te por isso e só tenho pena que não possas ouvir a banda sonora de fundo que floresce no jardim musical dos Anthony and The Johnsons.

Isto é uma frase que, muito embora esteja relacionada como uma relação particular, como, afinal, é a que decorre da nossa velha amizade e por isso seja de nível particular, ainda assim, dizia, isto é uma frase que deve ser dita em público por tudo aquilo que expressa: é muito bom reencontrar amigos no outro lado da vida. É sinal que por que tinham sido os caminhos que tenhamos percorridos, nunca deixámos de trilhar o nosso próprio caminho. I like it.

Aquele abraço, velha companheira
Luís