Reclinada Nua, Amedeo Modigliani, 1917 Óleo sobre Tela 65x100 |
UM
RAPAZ DEMASIADO NORMAL
As
mulheres daquela aldeia eram todas pequenas e sem cabelo, com exceção da mãe
dele. Aliás, o tamanho não era o único motivo de estranheza sempre que se
falava da Silvina do Poço. A mulher, ao contrário de todas as outras, era, de
facto, grande. Mas era a sua cor o que mais conversa provocava entre quem a via
ou chegava a conhecer tal caraterística. A mulher era branca.Muito branca. Não
de raça, mas de cor. Era mesmo branca. Branca como a cal. Apenas na ponta de
cada um dos quatro dedos de cada uma das mãos tinha uma ligeira mancha
acastanhada, quase impercetível. Se não fossem as oito manchas ligeiramente
acastanhadas, Silvina do Poço seria completamente branca, não só de raça mas
também de cor.
Em
suma, a Silvina do Poço era mesmo muito branca, era mais alta que todas as
mulheres da aldeia e tinha apenas quatro dedos em cada uma das mãos. E, tal
como todas as outras mulheres daquela aldeia, não tinha cabelo e, por isso, não
se sabia de que cor este seria se fosse de uma cor qualquer.
Ele,
o filho, era um rapaz normal, com excepção do facto de ser ele. Isto é, de ser
ele, o filho da Silvina do Poço.
Essa
condição trazia-lhe algumas situações curiosas. Por exemplo, quando ele, o
filho da Silvina do Poço, começou a frequentar a Escola da vila, toda a gente
comentou: o miúdo até era coradito, tinha dez dedos, não era alto nem baixo e,
por ser rapaz, tinha cabelo.
Mais
tarde, o pai da sua primeira namorada, impôs como condição para autorizar o
namoro, vê-lo de perto durante oito dias, tempo que entendeu ser necessário
para verificar as mãos do rapaz, tendo determinado um dia para cada um dos
dedos. Este tempo foi posteriormente acrescido em dois dias, uma vez que, para
surpresa do homem, o filho da Silvina do Poço não tinha manchas e, pior ainda,
tinha dez dedos. O pai da rapariga achou então que o rapaz não era merecedor da
sua confiança… afinal, era sua obrigação ter apenas oito dedos, como a mãe. A rapariga
acabou, por isso, o namoro, e o filho da Silvina do Poço teve o seu primeiro
desgosto de amor.
Mas
o pior veio depois. Chegando à idade, o rapaz foi às sortes e, quando voltou
para a aldeia, vinha triste e cabisbaixo. Tinham-lhe exigido um atestado qualquer,
pois alguém teria levantado a suspeita de que ele não era filho dela, embora
ela, a Silvina do Poço, estivesse convencida que sim. Eu não sei, mas, na
verdade, o pai dele era o Pataco, o que vendia a água às mulheres da aldeia e
que toda a gente dizia que era muito mulherengo. Eu, já me vim à cabeça que ele
podia muito bem ter traído a mulher. Coitada! Portanto, o rapaz, às tantas, até
nem era filho dela. Fica a dúvida…
O
suposto filho da Silvina do Poço tinha-se convencido que ia à tropa e quando
voltou à aldeia nunca mais pareceu o mesmo. Deixou até de falar… de sorrir…
Um
dia saiu muito cedo e nunca mais voltou.
Mais
tarde, encontraram-no num poço velho. Morto, tal como o pai da Silvina.
O
rapaz matou-se sem razão. Era mesmo filho dela.
Como
provou ao morrer.
Afinal,
ele era mesmo filho da Silvina do Poço, assim chamada por causa do pai.
Maria
Teresa Bondoso
9 comentários:
Bom Dia, Teresa e António!
Teresa, a sua história desta 2ª feira (que, deixe-me dizer, está absolutamente Anormal: muito Sol e nada de nuvens!) é o nosso mundo, mas ao contrário, não é? Parece que tudo - e todos - os que não encaixam na 'forma' continuam a não ter lugar, simplesmente porque não existe a capacidade para entender esse Outro, cuja diferença, por vezes, tanto perturba! E o que se faz é tentar encaixá-lo nessa 'forma', onde não cabe, por ter um formato diferente! E, perante a perplexidade desse não caber, marginaliza-se, maltrata-se,ignora-se ou, ainda pior, vai-se tentanto a todo o custo moldá-lo para que 'encaixe'... Mas há neste nosso maravilhoso mundo um lugar para cada um - e não tem que ser no fundo de um poço! Um lugar ao Sol,como diz a canção!
António, muito bonito o quadro que escolheu, como sempre!
Abraços aos dois!
Amélia
A Silvina do Poço vista pelo Modigliani está admirável.
Bom dia.
A Teresa é uma daquelas pessoas que escreve como quem respira sendo conveniente notar que não sofre de asma, nem bronquite, nem de nenhuma dessas doenças do aparelho respiratório.
Caminha-se com prazer e (à) vontade pelos caminhos que vai desenhando nas linhas que escreve. Quando esse talento é utilizado para desnudar as incongruências do social com que nos "brindam" ganha ainda uma qualidade maior.
Viver das e para as aparências normalmente não dá bons resultados.
Como diz o Amigo Luis, esta "Silvina do Poço" é qualquer coisa... do Modigliani já há muito que lhe reconhecemos a beleza e o talento.
Um abraço.
Manuel João Croca
A tragédia da pequenez, a preceito, sem preconceito(s), na crueza que os pequenos horizontes sempre têm.
Certo?
Esta minha história nasceu da perplexidade que sempre me causam as tentativas - e são tantas - para uniformizar... é o que aqui não acontece, neste nosso EG, que tanta diversidade revela. Cabe-me agradecer os comentários e o cuidado do António que, como sempre, escolheu uma imagem muito oportuna. Terá Modigliani conhecido a Silvina do Poço?
Bom dia, Teresa!
Ontem o seu texto ficou-me na cabeça! E porque somos ambas professoras, se calhar temos o mesmo tipo de preocupações acerca da uniformização, de que fala no seu comentário! E também por este facto e porque é impossível despir esta nossa farda, temos responsabilidades acrescidas em todo este processo, não concorda? Como educar para a aceitação do Outro? Qual o papel que a Escola deve ter neste processo? Certamente não estamos a fazer tudo o que se deve, não basta integrar os meninos com deficiências profundas em turmas ditas 'normais' para que uns e outros se aceitem e respeitem mútuamente... ando aqui às voltas com estes pensamentos hoje... para não chegar a lado nenhum, de certeza!!! Em todo o caso gosto de partilhar estas minhas preocupaçoes consigo, Teresa, porque para além de uma escritora fantástica é, também, uma pessoa muito sensível a estes assuntos!
Um abraço e desejos de um bom dia!
Amélia
Modigliani conheceu muitas Silvinas do Poço... Lembrei-me da sua pintura para ilustrar a diferença, sem esquecer que, dentro de nós, existe um mundo de contradições. Somos capazes do melhor e do pior... Num corpo de anjo pode espreitar o demónio, por causa dum bater de asas de borboleta pode acontecer um furacão...
As mulheres de Modigliani inundam toda a tela com a sua sensualidade. Quase sempre, com uma pincelada pastosa que cria pensamentos tácteis no observador, com os contornos sinuosos marcados por um traço negro intenso. Tudo isto, potenciado com uma paleta de cores, mais do que cálidas, quentes. Tão quentes que a polícia parisiense lhe fez retirar uma parte dos nus expostos na galeria Berthe Weill, na única exposição individual que realizou.
O quadro que escolhi, mostra um Modigliani diferente, mais delicado com tons mais suaves...
Escolhi-o pela diferença, em homenagem à Silvina!
António
Amélia, de facto a questão da aceitação é algo que me preocupa e me ocupa. E chego a pensar que a escola, por mais que se tente fazer diferente, é, por ela própria e pela natureza que foi ganhando, um lugar que se organiza a partir de diferenças que no fundo não são aceites. Por isso, a escola coloca tudo por camadas: os miúdos pequenos, os outros maiores, depois os mais velhinhos, a seguir os que já sabem mais, e depois o secundário, e a seguir a faculdade… e por aí adiante (com os velhos a sobrar). Numa organização assim, como poderíamos incluir? Erradamente, acho eu, pensa-se que aprender é mais fácil quando separamos. E para organizarmos, classificamos e separamos… grande equívoco, esse. Eu tenho para mim que a forma mais perfeita de aprender é ensinar (por isso, não são só os mais novos que aprendem com os mais velhos, mas os mais velhos também aprendem com os mais novos) e a minha experiência diz-me também que a diversidade beneficia a aprendizagem na medida em que coloca desafios. O problema é que enquanto nós pensarmos que os alunos aprendem mais com os professores do que sozinhos e uns com os outros, temos de os seriar (usando critérios de uniformidade e não de diversidade) para conseguirmos distribuir-nos por todos. Depois, fazemos caixas onde cabem os meninos. Os que não cabem têm de ter caixinhas especiais e, por vezes – muitas vezes – essas caixinhas até se colocam dentro das outras caixas. O problema é que as caixas não têm janelas… e a luz não consegue entrar.
António, as contradições encantam e impelem-nos. Sem elas, nunca haveria arte. Não é?
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