segunda-feira, 18 de março de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (20)

Reclinada Nua, Amedeo Modigliani, 1917
Óleo sobre Tela 65x100

UM RAPAZ DEMASIADO NORMAL

As mulheres daquela aldeia eram todas pequenas e sem cabelo, com exceção da mãe dele. Aliás, o tamanho não era o único motivo de estranheza sempre que se falava da Silvina do Poço. A mulher, ao contrário de todas as outras, era, de facto, grande. Mas era a sua cor o que mais conversa provocava entre quem a via ou chegava a conhecer tal caraterística. A mulher era branca.Muito branca. Não de raça, mas de cor. Era mesmo branca. Branca como a cal. Apenas na ponta de cada um dos quatro dedos de cada uma das mãos tinha uma ligeira mancha acastanhada, quase impercetível. Se não fossem as oito manchas ligeiramente acastanhadas, Silvina do Poço seria completamente branca, não só de raça mas também de cor.
Em suma, a Silvina do Poço era mesmo muito branca, era mais alta que todas as mulheres da aldeia e tinha apenas quatro dedos em cada uma das mãos. E, tal como todas as outras mulheres daquela aldeia, não tinha cabelo e, por isso, não se sabia de que cor este seria se fosse de uma cor qualquer.
Ele, o filho, era um rapaz normal, com excepção do facto de ser ele. Isto é, de ser ele, o filho da Silvina do Poço.
Essa condição trazia-lhe algumas situações curiosas. Por exemplo, quando ele, o filho da Silvina do Poço, começou a frequentar a Escola da vila, toda a gente comentou: o miúdo até era coradito, tinha dez dedos, não era alto nem baixo e, por ser rapaz, tinha cabelo.
Mais tarde, o pai da sua primeira namorada, impôs como condição para autorizar o namoro, vê-lo de perto durante oito dias, tempo que entendeu ser necessário para verificar as mãos do rapaz, tendo determinado um dia para cada um dos dedos. Este tempo foi posteriormente acrescido em dois dias, uma vez que, para surpresa do homem, o filho da Silvina do Poço não tinha manchas e, pior ainda, tinha dez dedos. O pai da rapariga achou então que o rapaz não era merecedor da sua confiança… afinal, era sua obrigação ter apenas oito dedos, como a mãe. A rapariga acabou, por isso, o namoro, e o filho da Silvina do Poço teve o seu primeiro desgosto de amor.
Mas o pior veio depois. Chegando à idade, o rapaz foi às sortes e, quando voltou para a aldeia, vinha triste e cabisbaixo. Tinham-lhe exigido um atestado qualquer, pois alguém teria levantado a suspeita de que ele não era filho dela, embora ela, a Silvina do Poço, estivesse convencida que sim. Eu não sei, mas, na verdade, o pai dele era o Pataco, o que vendia a água às mulheres da aldeia e que toda a gente dizia que era muito mulherengo. Eu, já me vim à cabeça que ele podia muito bem ter traído a mulher. Coitada! Portanto, o rapaz, às tantas, até nem era filho dela. Fica a dúvida…
O suposto filho da Silvina do Poço tinha-se convencido que ia à tropa e quando voltou à aldeia nunca mais pareceu o mesmo. Deixou até de falar… de sorrir…
Um dia saiu muito cedo e nunca mais voltou.
Mais tarde, encontraram-no num poço velho. Morto, tal como o pai da Silvina.
O rapaz matou-se sem razão. Era mesmo filho dela.
Como provou ao morrer.
Afinal, ele era mesmo filho da Silvina do Poço, assim chamada por causa do pai.

Maria Teresa Bondoso

9 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Bom Dia, Teresa e António!

Teresa, a sua história desta 2ª feira (que, deixe-me dizer, está absolutamente Anormal: muito Sol e nada de nuvens!) é o nosso mundo, mas ao contrário, não é? Parece que tudo - e todos - os que não encaixam na 'forma' continuam a não ter lugar, simplesmente porque não existe a capacidade para entender esse Outro, cuja diferença, por vezes, tanto perturba! E o que se faz é tentar encaixá-lo nessa 'forma', onde não cabe, por ter um formato diferente! E, perante a perplexidade desse não caber, marginaliza-se, maltrata-se,ignora-se ou, ainda pior, vai-se tentanto a todo o custo moldá-lo para que 'encaixe'... Mas há neste nosso maravilhoso mundo um lugar para cada um - e não tem que ser no fundo de um poço! Um lugar ao Sol,como diz a canção!

António, muito bonito o quadro que escolheu, como sempre!

Abraços aos dois!

Amélia

luis santos disse...

A Silvina do Poço vista pelo Modigliani está admirável.

MJC disse...

Bom dia.

A Teresa é uma daquelas pessoas que escreve como quem respira sendo conveniente notar que não sofre de asma, nem bronquite, nem de nenhuma dessas doenças do aparelho respiratório.

Caminha-se com prazer e (à) vontade pelos caminhos que vai desenhando nas linhas que escreve. Quando esse talento é utilizado para desnudar as incongruências do social com que nos "brindam" ganha ainda uma qualidade maior.

Viver das e para as aparências normalmente não dá bons resultados.

Como diz o Amigo Luis, esta "Silvina do Poço" é qualquer coisa... do Modigliani já há muito que lhe reconhecemos a beleza e o talento.

Um abraço.

Manuel João Croca

Luís F. de A. Gomes disse...

A tragédia da pequenez, a preceito, sem preconceito(s), na crueza que os pequenos horizontes sempre têm.

Certo?

Unknown disse...

Esta minha história nasceu da perplexidade que sempre me causam as tentativas - e são tantas - para uniformizar... é o que aqui não acontece, neste nosso EG, que tanta diversidade revela. Cabe-me agradecer os comentários e o cuidado do António que, como sempre, escolheu uma imagem muito oportuna. Terá Modigliani conhecido a Silvina do Poço?

Amélia Oliveira disse...

Bom dia, Teresa!
Ontem o seu texto ficou-me na cabeça! E porque somos ambas professoras, se calhar temos o mesmo tipo de preocupações acerca da uniformização, de que fala no seu comentário! E também por este facto e porque é impossível despir esta nossa farda, temos responsabilidades acrescidas em todo este processo, não concorda? Como educar para a aceitação do Outro? Qual o papel que a Escola deve ter neste processo? Certamente não estamos a fazer tudo o que se deve, não basta integrar os meninos com deficiências profundas em turmas ditas 'normais' para que uns e outros se aceitem e respeitem mútuamente... ando aqui às voltas com estes pensamentos hoje... para não chegar a lado nenhum, de certeza!!! Em todo o caso gosto de partilhar estas minhas preocupaçoes consigo, Teresa, porque para além de uma escritora fantástica é, também, uma pessoa muito sensível a estes assuntos!

Um abraço e desejos de um bom dia!
Amélia

A.Tapadinhas disse...

Modigliani conheceu muitas Silvinas do Poço... Lembrei-me da sua pintura para ilustrar a diferença, sem esquecer que, dentro de nós, existe um mundo de contradições. Somos capazes do melhor e do pior... Num corpo de anjo pode espreitar o demónio, por causa dum bater de asas de borboleta pode acontecer um furacão...

As mulheres de Modigliani inundam toda a tela com a sua sensualidade. Quase sempre, com uma pincelada pastosa que cria pensamentos tácteis no observador, com os contornos sinuosos marcados por um traço negro intenso. Tudo isto, potenciado com uma paleta de cores, mais do que cálidas, quentes. Tão quentes que a polícia parisiense lhe fez retirar uma parte dos nus expostos na galeria Berthe Weill, na única exposição individual que realizou.

O quadro que escolhi, mostra um Modigliani diferente, mais delicado com tons mais suaves...

Escolhi-o pela diferença, em homenagem à Silvina!

António

Unknown disse...

Amélia, de facto a questão da aceitação é algo que me preocupa e me ocupa. E chego a pensar que a escola, por mais que se tente fazer diferente, é, por ela própria e pela natureza que foi ganhando, um lugar que se organiza a partir de diferenças que no fundo não são aceites. Por isso, a escola coloca tudo por camadas: os miúdos pequenos, os outros maiores, depois os mais velhinhos, a seguir os que já sabem mais, e depois o secundário, e a seguir a faculdade… e por aí adiante (com os velhos a sobrar). Numa organização assim, como poderíamos incluir? Erradamente, acho eu, pensa-se que aprender é mais fácil quando separamos. E para organizarmos, classificamos e separamos… grande equívoco, esse. Eu tenho para mim que a forma mais perfeita de aprender é ensinar (por isso, não são só os mais novos que aprendem com os mais velhos, mas os mais velhos também aprendem com os mais novos) e a minha experiência diz-me também que a diversidade beneficia a aprendizagem na medida em que coloca desafios. O problema é que enquanto nós pensarmos que os alunos aprendem mais com os professores do que sozinhos e uns com os outros, temos de os seriar (usando critérios de uniformidade e não de diversidade) para conseguirmos distribuir-nos por todos. Depois, fazemos caixas onde cabem os meninos. Os que não cabem têm de ter caixinhas especiais e, por vezes – muitas vezes – essas caixinhas até se colocam dentro das outras caixas. O problema é que as caixas não têm janelas… e a luz não consegue entrar.

Unknown disse...

António, as contradições encantam e impelem-nos. Sem elas, nunca haveria arte. Não é?