terça-feira, 4 de junho de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Gosto quando as pessoas me surpreendem, sempre gostei e ainda mais quando tal se verifica com alguém de quem goste. Isso, aliás, é algo que me faz amar intensamente o Manuel e que, em certa medida, muito tem contribuído para fazer dele o amor da minha vida. Não foi sem receios que aceitei entrar nesta aventura que no futuro se fez bem sucedida, de erigirmos do nada uma comunidade onde pudéssemos encontrar uma vida decente e que mais firmes ficaram quando os meus queridos pais manifestaram as suas reticências e que não sentia apenas por mim mas por ele, um rapaz responsável e trabalhador, era certo, mas habituado a uma vidinha organizada e com todos os cuidados assegurados, como por magia, pela supervisão de uma mãe zelosa e uma mão cheia de fortes braços de uma criadagem para quem ele era o menino mimado de uma casa a leste das dificuldades. E o encanto foi-me envolvendo conforme o fui vendo ser capaz de dar boa conta do recado. Não quero dizer com isto que bem lá no fundo não esperasse que assim viesse a suceder e ainda menos que duvidasse que, para tanto, ele possuísse força bastante. Mas não me deixou de surpreender o desembaraço com que se fez incansável para enfrentar toda e qualquer privação e as maiores dificuldades. E isso levou-me a amá-lo ainda mais e a querer ter filhos dele e mesmo com estes o meu amado me surpreendeu pela ponderação e a sabedoria com que nunca deixou de resolver algum dos problemas que aqueles lhe foram colocando. É bom quando o é desse jeito, quando aqueles com quem partilhamos a vida nos fazem sentir que há sempre algo de bom a esperarmos deles. E por vezes as surpresas estão onde menos se espera por elas, como já tive fartas oportunidades para verificar ao longo da minha actividade na docência e mais engraçado se torna quando é com alguém que, de tão perto de nós, dele pensávamos tudo saber. Bem, creio não ser novidade nenhuma o facto de o senhor Abel dedicar parte das suas horas livres a pequenos trabalhos em madeira que, de uma maneira ou de outra, acabou por espalhar pelas casas de todos nós, mais como lembranças de amizade que das peças decorativas que na realidade são e aí depende da harmonia que o gosto de cada um lhes consegue, acima de tudo por serem verdadeiras esculturas que, se não impressionam pelo tamanho, logo despertam e deliciam o olhar pelo realismo dos pormenores e pelo simbolismo que comportam e que o seu criador sabe expor com a própria eloquência que a vida lhe foi conferindo e, num ou noutro caso, pela densidade das expressões que consegue moldar e que dão às figurinhas as almas que se lhes reconhecem nos rostos. O Manuel é o melhor testemunho sempre que diz e ao longo destes anos fê-lo uma boas centenas de vezes que não se cansa de admirar o semblante daquele cesteiro que temos num dos nichos da sala, de quem diz transparecer o primado da liberdade individual, pois em seus olhos, nos vincos descaídos da face se nota mais que a vontade de quem quis palmilhar um dado caminho, a determinação de quem não se deixa vergar perante as chapadas que as agruras da vida lhe derramaram sobre os ombros. Como esta há outras esculturas de que poderíamos falar como verdadeiras obras de arte que são e dessa forma toda a gente por aqui sabia que o senhor Abel que, para mim, desde a primeira hora revelara um espírito de artista na maneira como se entregava ao seu papel nesta nossa tremenda ousadia, tinha um gostinho especial pelas horas em que se evadia por entre, como ele próprio tem o hábito de gracejar, os seus bonecos. Ora agora ainda podemos avaliar melhor a sua humildade e a modéstia dessas suas palavras. Eu não compreendi de imediato o alcance de um reparo que uma mulher que enviuvou há pouco fez ao meu querido amigo, no café da associação, numa destas noites, em que veio à conversa a sua reforma recentemente conquistada. “-Homem, se você não tem nada para fazer, mais vale manter-se a trabalhar. Não vê o que aconteceu com o meu marido?” Podem não ter sido exactamente estas as palavras, mas tenho a certeza que é o sentido daquilo que disse. Sinceramente nunca me tinha ocorrido o obstáculo que é ultrapassar a obrigação da actividade diária decorrente do trabalho e só quando ela disse que é mais fácil para as mulheres que sempre têm algo para fazer, mais não fosse a lida da casa, mas também uma rendinha ou qualquer coisa do género que raramente deixam de estar ao seu alcance, para que não caiam no marasmo da inactividade e da falta de ânimo, como o seu homem que se apagara num instante, só então compreendi como é importante mantermos motivos de interesse para continuarmos com a disposição para nos erguermos da cama todas as manhãs. E foi aí que fiquei a saber que isso não o assustava por finalmente até vir a ter tempo para organizar o conjunto do seu trabalho, eu digo obra e a partir daí até a proceder à exibição da mesma, isto, claro, para além de passar a dispor do tempo que desejar para lhe dar continuidade e, por ventura, até um fim. E foi também a esse propósito que ele, mais tarde, nos mostrou a oficina e o verdadeiro tesouro que aí guarda em prateleiras do chão ao tecto, centenas de peças que vão desde o conjunto da fauna da região, com os animais em poses naturais e representados com uma perfeição anatómica assinalável, aos ofícios e profissões antigas, alguns e algumas já desaparecidas, outras perto disso, passando por quadros do quotidiano e representações de casas de gente pobre que ele conheceu e de cuja qualidade habitacional experienciou. Achei graça quando ele serenou a senhora com um gesto largo do braço e a confissão de que muito teria para fazer e, ainda por cima, nem tendo que se preocupar com os netos que lá vão crescendo saudáveis e sob a tutela dos pais que pouco precisam dele para criarem e educarem os petizes como pessoas de bem. E depois ainda há a associação onde conta ter tempo para levar à prática um trabalho cultural que a seu ver é, como nunca antes, imprescindível. E houve uma gargalhada quando ele tirou da carteira e exibiu a carta de condução acabada de obter sem qualquer reprovação e que lhe permitirá dar vazante a um sonho de menino e que se renovou nos primeiros anos de casamento e que é o de conhecer o país na companhia da sua Noémia, mais que companheira, a amada e a amante de uma vida. E foi simplesmente deliciosa a reunião de ontem à noite, na minha casa, em que ele, o Manuel e o Gustavo se deram ao esforço de decidir qual seria o melhor carro para ele comprar.
É tão bom ter amigos destes.

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