É claro que isto foi um assunto que toda a família abordou e devo dizer que a concordância teve o fórum da unanimidade e se reservas houve, prenderam-se estas mais com os receios naturais perante a perspectiva de um jovem ser lançado ao mundo no isolamento de tudo o que foi a sua vivência anterior e na solidão responsabilizável de tratar de si num mundo muito diferente daquele de que partiu que, propriamente dito, com as razões que implicaram o passo que, sobre essas, nunca dúvida alguma surgiu susceptível de as colocar em causa. O João lá vai lançado nos seus estudos de medicina onde tem obtido notas máximas e os mais rasgados elogios por parte dos mestres o que lhe augura um amanhã frutuoso e seguro e, para já, lhe confere a possibilidade de adiar a incorporação no serviço militar e, por consequência, a eventualidade de uma participação na guerra. Apesar de tudo parecer caminhar em sentido contrário, quem poderá dizer que as hostilidades não estejam acabadas quando este meu filho receber o mesmo título que o meu querido pai recebeu e tão bem soube honrar? Seja como for, a condição de médico arreda-o, à partida, dos combates e em caso de ter que fazer a tropa, a sua situação dificilmente seria tão preocupante como a daqueles a quem compete andar pelo mato, a ter que matar para não morrer. O Carlos seria sempre um caso diferente e com toda a inquietação que o tem dominado neste último par de anos, correndo o risco de vir a reprovar algum ano e a perder a liberdade civil com a chamada para assentar praça. E segundo o Manuel que dessas coisas sou uma simples ignorante, com a frequência de estudos em ciências económicas e financeiras é muito grande a probabilidade ou seria sempre muito forte a hipótese de vir a alinhar entre as forças que ocupam o terreno e procedem às operações de vigilância e limpeza do território, necessariamente superiores à de vir a ter um bom lugar em qualquer posto de secretaria longe de tiroteios e sofrimentos. Ainda para mais quando o azar já andou tão perto e continua tão visível no semblante do Palma com quem, amiúde, nos cruzamos. Mal o rapaz, ele próprio, manifestou a vontade de não cumprir o serviço militar para não ter que fazer a guerra, nem que para isso tivesse que enfrentar a inevitável fuga para o estrangeiro, tanto eu como o Manuel compreendemos de imediato que tínhamos ali um problema grave a que não poderíamos fugir e na primeira oportunidade que terá sido nas carícias do travesseiro dessa mesmíssima noite, não demorámos muito tempo para concluir que não só não faria qualquer sentido a mais leve tentativa para alterar a opinião e a vontade daquele filho, como para além disso começava a ser nosso dever de pais apoiá-lo de todas as maneiras para que um tal empreendimento fosse levado a bom porto. Os sacrifícios por que o governo faz passar a nossa juventude são injustos e injustificáveis porque verdadeiramente evitáveis. Ambos discordamos dos motivos da insistência que o regime tem em ver a força militar como a única solução para o conflito e nenhum de nós gostaria de ver partir para a guerra e a possibilidade da morte alguém que criámos com tanto carinho e por quem tantas canseiras passámos para que a vida lhe fosse sendo leve e ele pudesse vir a sentir-se uma pessoa feliz. “-Se for para o ver partir que seja para a aventura da liberdade.” –Disse o irmão, sempre sério e filosófico, num dos jantares em que medimos os prós e os contras de uma abalada no início da sua vida de estudante universitário, ou a reboque de um ano lectivo mais fraco ou, no limite, com o curso tirado e pronto a entrar no mundo do trabalho. De qualquer forma, desde a primeira hora que ficou claro para nós que nenhum dos nossos filhos faria parte dessa demência que já devia ter terminado e que ainda estaria a tempo de ser resolvida por meios políticos e pacíficos que precavessem os interesses de todas as partes envolvidas. Se não falei anteriormente do caso foi antes de mais por questões de segurança, pois nunca se sabe quando estes cadernos possam ir parar a mãos erradas, mas igualmente por termos ficado indecisos quanto ao destino mais conveniente, pois se em França sempre poderíamos contar com a generosidade de um casal amigo com quem mantemos negócios, a quem visitámos por mais de uma vez e que no último Verão aqui passaram alguns dias, ocasião em que se ofereceram para acolher alguém e ajudar numa situação daquelas, a verdade é que toda a agitação social que ultimamente tem assolado esse país, não seria o mais recomendável para um jovem inexperiente a ter que estudar e tratar de si e enviar o Carlos, com as ideias radicais e um tanto sonhadoras, para não dizer bizarras que defende, enviar esse meu filho para uma fogueira daquelas seria como que o equivalente a dar o ouro a guardar ao ladrão. Tivemos sorte. O senhor Polignac ofereceu-nos os contactos de uma família belga de quem é amigo e teve mesmo o cuidado de, pessoalmente, tomar todas as previdências para que o rapaz fosse recebido com o calor de braços conhecidos e não com a frieza da distância que o desconhecimento acarreta, chegando mesmo ao pormenor de bondade de o ter esperado na estação central de Bruxelas para o conduzir à casa dos seus amigos que habitam nos arredores da cidade. Jamais teremos como retribuir tamanho gesto. Contudo era mais a incerteza de o sabermos tão longe e por sua própria conta aquilo que à partida nos terá provocado algum aperto na barriga. Nós educámos os nossos filhos para serem pessoas independentes e para isso tivemos que lhes transmitir a noção de responsabilidade de saberem cuidar de si e, de outro modo para nada serviria aquilo que seria apenas retórica, paralelamente a isso as competências essenciais para o conseguir, desde o ânimo e empenho para aprender e realizar seja que tarefa for –e, nisso, o mais novo sempre passou a perna ao mais velho- ao domínio de todos os requisitos que começam no saber fazer a cama e lavar a roupa, bem como limpar e arrumar o espaço que se habita e terminarem nos segredos da cozinha, sem omitir as restantes obrigações que uma pessoa possa ter enquanto membro de uma sociedade. Mais para mim até que para o pai, seria sempre de esperar que uma vez posto à prova ele desse conta do recado. Contudo, era mais aí que poderíamos ter alguma intranquilidade, sobretudo pela separação que não sabemos quando terá um fim, ainda que por causa das saudades o possamos visitá-lo uma ou outra vez. Agora estou mais calma e sinto que o nervosismo das últimas semanas não tardará a passar. Recebemos esta manhã a sua primeira carta e diz que está bem. Não escreveu mais cedo porque ainda não tinha a sua própria morada e sabia que o pai falara com o senhor Polignac e portanto estaria informado como tudo tinha corrido a contento. Alugou um anexo no quintal de um amigo dos Simon que o receberam, segundo as suas palavras, com toda a fraternidade e uma simpatia solidária. Para já está a trabalhar num sector de que sempre gostou e de que percebe como poucos, como mecânico de automóveis numa oficina e como já legalizou a sua situação de refugiado, conta vir a matricular-se na universidade no próximo ano, estando apenas a balançar entre permanecer na economia ou mudar para a área das sociologias. Para começo de uma separação forçada e apesar da saudade que temos a todo o custo de controlar, não podemos dizer que hajam motivos para preocupações de maior. Criámos pessoas capazes de enfrentarem a vida e aqui está a prova disso. Olho-me ao espelho e sinto orgulho por isso.
E de repente e muito mais cedo do que esperávamos, eu e o Manuel voltámos a ficar só os dois nesta casa onde temos sido tão felizes. É estranho, sente-se muito a ausência dos rapazes, mas sabemos que é assim a vida e depois sempre podemos voltar a namorar à nossa vontade.
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