Ora aqui está uma daquelas ocasiões que nos dão que pensar e que nos levam a questionar os nossos valores mais profundos, no caso, o limite em que temos a consideração pela vida humana. Eu sou naturalmente contra a pena de morte e convivo mal com a ideia de essa mesma atitude ser passível de considerar determinadas excepções, nomeadamente a abertura para que aquela tenha sido aplicada aos criminosos de guerra nazis e especialmente àqueles que estiveram directamente envolvidos nesse crime hediondo que foi o genocídio dos judeus, na Europa. Ainda que seja capaz de contemporizar com este último como único e excepcional levantamento daquela regra e do princípio que lhe subjaz, não deixo por isso de ter sinceras dúvidas e reservas sobre um procedimento desses. Recuso a pena capital, antes de tudo, por causa do primado da vida que tomo por bem inalienável e insubstituível. Cada um de nós é único e, só por si, essa singularidade incontornável, implica o máximo respeito por todo e qualquer ser humano que se traduz, em primeiro lugar, na defesa dessa mesma vida e teoricamente deveria acarretar que aquele fosse o vértice de qualquer ideia ou política de organização social. Afinal, basicamente, foi esse o juramento que o meu querido e saudoso pai fez ao abraçar a carreira de médico, o compromisso de, sem regatear esforços, tudo procurar fazer para salvar uma vida humana. Pois é por isso que temos que refutar toda e qualquer apologia da pena de morte, na medida em que, meros humanos que somos e, enquanto tal, permanentemente sujeitos à possibilidade de errarmos, nada nos garante que não possamos condenar um inocente a quem, em caso de execução da sentença, tiramos a vida sem que possamos voltar atrás, algo que para mim é, de todo, inconcebível. Aceitar a eventualidade de matar por erro um inocente, exclui, de imediato, toda e qualquer tentativa de afirmação do primado da vida e assim, seja qual for a circunstância, de modo algum podemos aceitar tão fatal castigo. O que não quer dizer que não possamos matar alguém, para tanto encontrando razões que, sem terem que desculpabilizar o acto, nos podem levar a compreendê-lo e isso é uma verificação que até o direito considera no conceito, por exemplo, de legítima defesa, embora estivesse a pensar de certa maneira fora desse âmbito e a lembrar-me de um pai que por vingança assassinasse o assassino e violador de uma filha. É claro que tal seria inaceitável e se o não fosse, descerraríamos uma porta através da qual passariam todos os demónios que impossibilitariam a justiça que ficaria aos critérios e capacidades de cada um e, em conformidade, apenas ao alcance dos mais fortes. Seria abdicar da civilização o que implicaria um regresso à barbárie. Contudo, será que moralmente poderíamos estabelecer uma condenação absoluta daquele homem? Eis uma interrogação, a meu ver, perturbante e, inclusivamente, me leva a ter que perguntar se é assim tão absoluto o mandamento que diz, não matarás. Obviamente se aplicado à guerra, em termos ideais, evitá-la-ia e na vivência do quotidiano não só traz consigo o tal primado da vida como nos impede de ir às últimas consequências em qualquer desavença. Certamente que foi por isso que terá sido aceite como bom e já lá vão mais de três mil anos. Mas será assim tão absoluta essa regra? E aqui não estou a pensar naquele pobre pai que viu a filha vilipendiada e, na sua dor incontível, fez, digamos, justiça pelas suas próprias mãos. Por acaso estou a pensar num jogador de futebol, não sei dizer quem nem onde, o qual, na sequência de uma pancada na cabeça, permanece em coma há um bom par de anos. Enquanto há vida há esperança, diz o ditado, mas ele só está vivo através de máquinas sofisticadas que artificialmente lhe asseguram certas funções vitais que, por si só, o seu organismo não realizaria pelo que aquela pessoa só se manterá viva enquanto tiver todo o suporte daquela maquinaria. Poderemos considerar a situação uma permanência artificial na condição de ser vivo? Independentemente da resposta que possamos encontrar para esta interrogação, aquilo que mais perturba é ser levada a admitir se não teremos que levar em conta a vida dos entes queridos que o rodeiam. Se aquele indivíduo está a sofrer ninguém sabe, nem alguém terá como saber. Aliás, nem a medicina consegue dizer com rigor se está propriamente vivo; assim é considerado porque respira e o seu coração bate, mas só mediante o auxílio daquele aparato técnico. Será que sente? Será que o seu cérebro trabalha? Não sabemos, ou para falar com mais acerto, pelo menos por enquanto não somos capazes de o saber. Mas já temos como avaliar todo o sofrimento e mais ou menos graves transtornos que um tal estado faça recair sobre aqueles que a ele estão unidos pelos laços mais próximos e mais profundos. Teremos o direito de lhes impor um padecimento atroz em favor de alguém que nem temos como provar categoricamente que voltará a uma vida digna? Se algum desses parentes e, com eles, algum desses médicos, decidissem desligar os mecanismos que o seguram aos fios mínimos do que se convencionou chamar vida, sabendo que seriam condenados por homicídio em face da lei, poderiam ser moralmente condenados de uma forma absoluta? Tenho a certeza que se falasse disto em público, na mais leve das reacções e com a máxima benevolência, todos me diriam que estaria a complicar coisas que são simples, seja como for, não me parece uma objecção consistente e não é ela que me apaga as dúvidas e inquietações. Apesar de tudo isso, poderá alguém desejar a morte a outrem, por mais abjectas que tenham sido as suas acções? É um caminho muito difícil de escolher. Foi, no entanto, a minha primeira reacção perante a notícia do aparentemente grave acidente que sofreu Salazar e que o atirou para o hospital em estado crítico e com diagnóstico reservado. Ao certo não se sabe muito bem o que lhe aconteceu e como se encontra, mas pelas vozes que correm quanto à sua substituição enquanto chefe do governo, tudo leva a crer que o seu estado é bastante apreensivo. Aqui está a grande oportunidade para que as coisas mudem. Dado o mal que tem feito infligir aos portugueses e os crimes que o seu regime tem cometido ao longo de décadas, será moralmente condenável que lhe desejemos a morte, assim, sem rodeios nem paninhos quentes? De uma coisa tenho a certeza, não lhe chorarei o cadáver.
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