domingo, 30 de novembro de 2014

 


MIRADOURO 45 / 2014
 
*
Não fora a justificada desconfiança – já tornada descrença – pelo sucessiva e repetida traição nos actos ao que as palavras inflamadas na retórica prometem  cumprir, e o discurso teria vindo preencher uma lacuna que incomoda demais para poder ser esquecida.
Essa lacuna chama-se esperança ou melhor a falta dela.
Falta esperança, sustentada.
O renascer de esperança para quem se pensa e, por isso, vive incomodado por preocupações e insatisfações de vária ordem.
Se fosse sensato, ou sequer plausível, acreditar no que as palavras prometem, poderíamos estar no limiar de um novo ciclo capaz de mobilizar energias e vontades colectivas, indispensáveis à transformação sustentada de toda e qualquer realidade.
Assim, não será sensato (e não é alerta que se lance com satisfação muito antes pelo contrário) acreditar na autenticidade das intenções proclamadas.
Repetem-se os intérpretes na reinvenção do D. Sebastião que, há quem diga, se alberga na engrenagem secreta que faz mover a velha alma lusa.
Mas, para mim e creio que para um número cada vez mais alargado de actores e criadores de todas as coisas, a lenda já não é crível nem se sustenta. O D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir e a monarquia já acabou.
Agora os tempos são outros. São tempos colectivos que a todos convocam e responsabilizam. São tempos que precisam de arte e inteligência e convocam a nossa vontade para descobrir/construir novos caminhos.
Eleger outros protagonistas que possam representar o todo e não apenas uma parte, erigir outra atitude que possibilite outras expectativas e o renascer da esperança colectiva.
No entretanto, vamos pensando global e agindo localmente, procurando o(s) tal(is) outro(s) caminho(s).
Tentando, sempre.
**
Dilui-se no ar entre mar terra e céu, luz sombra e muito mais, o que no silêncio se procura escutar.
Quando calha consegue-se identificar e, às vezes, até mesmo perceber.
Vozes, odores, energias que, reflectindo-se, revelam caminhos e inspiram.
Espiral de eco interno mergulhando até ao centro do universo em nós, em cada, em mim.
O universo que há em mim e eu, encontramo-nos às vezes.
Miramo-nos e, quando o entendimento acende o silêncio por tudo o mais ser desnecessário, chegamos mesmo a abraçar-nos num enleio tão enleado que fico sem perceber se me diluo no universo ou se é o universo que entra inteirinho em mim.
***
E a bem-aventurança que o processo confere instala-se e embala a demolição da estátua interior do ser que se constrói, por dispensa do ego que tanto pesa.
Nessa leveza que o vácuo permite - no existir que não se pensa - pulsa intacta a vida noutras formas e qualidades.
Bicho, pedra, água, pássaro, árvore…
****
Árvore
(por exemplo).
Ser apenas árvore.
Raiz e asa no vento que ao passar se coça no baloiçar.
Casa abrigo tronco ramos verde folha flor e fruto cama mesa sombra.
Fogo e água.
Cumprir-se no crescimento renovado do ciclo das estações sem nada esperar.
Sem sequer mãos para receber.
Entrega plena no justo cumprimento de um destino feito dádiva.
Estar apenas e nesse estar ser.
Nada responder nada perguntar.
Ser apenas sem nada justificar.
É aí a Paz.
No outro dia disseram-me à laia de conselho
«escusas de procurar placas, setas ou sinais. Não há estradas para lá. Os caminhos são outros.»
Eu ouvi e agradeci presumindo ter entendido.
 Manuel João Croca
 

 
(Foto de Edgar Cantante
sobre pintura de artista que não conseguimos identificar)

sábado, 29 de novembro de 2014

João 3:16



Risoleta C. Pinto Pedro


Encontrei-o na auto-estrada.

À minha frente, uma carrinha que ultrapassei e cuja retaguarda apresentava uma pintura onde, entre imagens e palavras, apontava misteriosamente este salmo. Apesar de apresentar também a citação “Riding for de son”, o que me deixou curiosa acerca da possível gralha entre “son” e “sun”, esta carrinha apresentou-me um duplo enigma ao acrescentar a, para mim, hermética designação de salmo: João 3:16.

Obras na estrada, mais à frente, permitiram à carrinha ultrapassar-me, o que estive tentada a interpretar como um sinal do “Sun” ou do “Son”, que para mim já começava a ser a mesma coisa, e o fim das obras permitiu-me voltar a ultrapassá-la. Curiosa, o objetivo era chegar depressa ao Google, que, para além do conteúdo deste salmo, me informou que existe uma página do FB toda dedicada a ele, e outra que conta a Bíblia em 3 minutos.

Fiquei também a saber o conteúdo de “João 3:16”:  “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” E que “Riding for the son” é uma associação cristã de motociclistas.

Que só apareceu ali naquele momento para que eu, que me recusei a ir à catequese e acredito que tenha feito muito bem, porque nessa altura tinha coisas mais interessantes para fazer, tal como bolinhos de terra, nunca mais me esqueça do salmo “João 3:16” e também para me proporcionar a minha atividade tão amada de saborear as palavras, que têm, para mim, a coerência, a consistência e a revelação do símbolo. Por isso, mais do que gralha, acaso ou distinção de sentidos, “Sun” e “Son” são, no meu sentir, a mesmíssima coisa. Cada filho é um sol, mesmo que por vezes obscurecido, e até o sol é um filho, e cada ser que existe no mundo é filho, e como tal é, também, ainda que nublado, um sol. Isto não estava escrito na carrinha da associação, mas não preciso que me escrevam as descobertas que o meu coração gosta de me revelar.

Aqui fica este delírio sob a forma de crónica, numa época de aproximação do solstício, esse tempo de sol esquivo em que o dia diminui para imediatamente recomeçar crescer. Como um filho. Que é um sol. Por isso gosto tanto do Natal. Não me ofuscam as luzes dos enfeites das ruas. O sol oculto resplandece incomparavelmente mais no meu coração.


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Livros d'África




JOÃO TEIXEIRA DE VASCONCELOS (1882 – 1964, Amarante)

“O Dr. Jaime de Morais, empenhado na ocupação do distrito do Congo, encarregou-me, no ano de 1914, pouco depois de rebentar a guerra, de montar o pôsto de Sacandica, sob o paralelo vinte e dois, junto à fronteira belga.”

Este é o primeiro parágrafo de um extraordinário livro (que já justificava uma reedição) sobre as memórias angolanas de um dos cinco irmãos nascidos na Quinta de Pascoaes em Amarante (casa cujo nome foi adoptado para pseudónimo literário do irmão mais velho, o poeta Teixeira de Pascoaes), intitulado “MEMÓRIAS DE UM CAÇADOR DE ELEFANTES”, publicado em 1924 pelas Edições Maranus.

A sua ida para Angola deve-se ao espírito irrequieto e brigão que o caracterizava. Por não concordar com as praxes estudantis, quando entrou para a Faculdade de Direito em Coimbra, agarrou num pau e abriu a cabeça a onze estudantes. Como resultado foi parar à cadeia. O seu avô, governador da cidade, castigou-o enviando-o para África, para uma plantação de borracha de uma companhia inglesa em Angola, para que “refrescasse as ideias”. Tinha 19 anos de idade.

Foi quando se instalou em Sacandica “junto ao rio Cuilo, uma região de morros, (…) húmida e fértil, onde predominam as grandes florestas” que se tornou caçador de elefantes. “Seduziu-me sempre a vida aventureira, as longas divagações através da selva africana, onde o perigo e o imprevisto exercem sobre nós uma força de atracção à qual se não resiste. Não há como a caça para se poder viver em África uma vida de grandes sensações.”

Regressou a Portugal oito anos depois por causa da morte do pai. Casou-se nessa altura deixando a esposa grávida para regressar a África, para reencontrar aqueles “silêncios lisos como uma planície”.

A sedução por África, “local de onde nunca se regressa” como um dia alguém tão bem escreveu, reflecte-se empolgadamente em todo o livro:
“Depois de marchas demoradas na floresta, a impressão que sentimos, ao entrar nas planícies, é de alívio, luz e liberdade. A floresta, húmida, morna, escura e asfixiante, enerva e deprime; a planície, descoberta e luminosa, alegra e tonifica. Na planície, respiramos livremente e o sol tem uma claridade deslumbradora. Mas o agradável da vida na planície é efémero, como todas as coisas boas. O sol já nos queima com uma insistência dolorosa. Começamos a ter sede e começa a faltar-nos a água. Correm-se léguas e léguas até se encontrar um rio, sempre através de carreirinhos fechados dum lado e do outro, onde o ar é parado e quente. Voltamos a sentir saudades da floresta. Em parte nenhuma como em África, só estamos bem onde não estamos, o que tanto facilita a vida errante e aventureira. É um bom remédio contra a inércia provocada pelo calor húmido que nos deprime.
(…) Como são agradáveis os primeiros minutos da manhã, nas planícies africanas! O ar é leve, respira-se bem e acaricia-nos uma impressão deliciosa de frescura. Mas tudo isto é um momento, porque o sol não se faz esperar; já expele os seus raios ardentes por toda a extensão indefinida: - capim e sempre capim, formando um tapete imenso até aos recortes verde negros das montanhas do Congo belga.”

De regresso a Portugal, aqui se deixou morrer embalado pela saudade de África. Não é fácil descrever o amor que se sente por uma terra, por um local, mas este Autor consegue-o muito bem!


Tomás Lima Coelho

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Vendas Novas, 24 NOV 2014

INTELIGÊNCIA EMOCIONAL?

Não levem a mal a observação que se segue. Não quero ser desmancha prazeres, apenas apelar à reflexão e ao espírito crítico. Penso que, para além de uma grande abertura de espírito, é bom termos em atenção que aquilo que muito se populariza tem por regra pouca consistência.

O conceito de inteligência emocional foi introduzido no digestivo marketing das ideias do pronto a pensar pelos psicólogos Peter Salovey (da Universidade de Yale) e John Mayer (da Universidade de New Hampshire), em 1990, para uso académico, como ferramenta de análise e compreensão do que é a inteligência, não para afirmar que há várias inteligências, que não há. Porém, em 1995, o jornalista do New York Times Daniel Goleman publicou o seu bestseller EMOTIONAL INTELLIGENCE: WHY IT CAN MATTER MORE THAN IQ e o “conceito” tornou-se viral, para usar uma expressão corrente na NET.

Ora acontece que a popularidade conseguida por este modismo não correspondeu nem corresponde ao seu valor científico e muito menos ao espiritual.

Não existe algo como inteligência emocional, o que existe é conduta emocional, hábitos emocionais, derivados dos sentimentos (predominantemente espirituais e de fraca repercussão orgânica) e das paixões (fortemente orgânicas).

A existir tal coisa como inteligência emocional, caberia perfeitamente na fusão das inteligências intra e inter-pessoal da nomenclatura – igualmente apenas de compreensão – proposta por Howard Gardner (Harvard 1980) na sua teoria das Inteligências Múltiplas. Todavia, este mesmo psicólogo, realçava a impossibilidade de aferição quantitativa das emoções, que o mesmo é dizermos que não se pode ser objectivo com a subjectividade.

A inteligência é só uma, os seus aspectos é que são tantos quanto nós queiramos entender e dizer: verbal, espacial, musical, cinética, etc. A inteligência conquista-se pelo entendimento e pela abertura de espírito e nenhuma técnica lhe vale. Para alguns é uma dádiva do alto, uma outorga; para muitos, uma trabalheira.


As “técnicas” ditas de aperfeiçoamento e ampliação do modismo alcunhado de inteligência emocional dificilmente produzirão o que prometem e muito facilmente contribuirão para poluir as estruturas da Personalidade, ao gerarem por ilusão ou censura uma cortina de ocultação da Besta que nos habita. Bem sabemos que não vale a pena escondê-la na cave nem abafar-lhe os berros, pondo a música alta. O processo é outro.

Abdul Cadre


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Arco-íris


Para muitas pessoas antigas esta configuração Celeste era o signo da divina benevolência.

Na Grécia, Íris, a deusa virgem do arco-íris, era a mensageira que transmitia à Terra as ordens de Zeus ou de Hera; ela era representada com asas e o caduceu. Já o simbolismo cristão da Idade Média representava as três cores do arco-íris assim:
O azul representava o Dilúvio;
O vermelho, o Cataclismo universal que ameaçava incessantemente o mundo;
E o verde a Nova Terra.

Na China Antiga considerava-se o arco-íris o símbolo da unificação do yin e do yang. Já a crença popular europeia associa muitas vezes o arco-íris à previsão de riquezas que estão por vir ou à descoberta de um tesouro (no lugar exato em que o arco-íris toca a terra).

O arco-íris é ainda identificado com o arco de Indra na mitologia da Índia, ao passo que o budismo o associa à serpente na imagem da escada do Buda que se apoia em duas nagas, ou serpentes de sete cabeças.

A observação mostra enfim que os arco-íris aparecem à tarde, raramente de manhã, porque a luz emitida é mais forte e mais filtrada pela atmosfera terrestre.
Muitas lendas estão ligadas a este fenômeno e fazem intervir as fadas, os Elfos as ondinas e outros seres elementares.


Walter Barbosa de Oliveira


terça-feira, 25 de novembro de 2014

FANTASIANA E OUTROS LUGARES

A MINHA MATEMÁTICA

Se pedisse à criança que fui para definir Matemática, ela diria que era um jogo, um malabarismo com número e letras; que era uma aventura tentando descobrir quantas horas levava um tanque a encher, sabendo que o mesmo perdia x água por minuto e que a torneira deitava água a uma velocidade y por segundo, ou vice-versa! 
Na adolescência, a Matemática continuava a ser um jogo de cáculos, de operações notáveis, de funções e relações (quantas vezes não eram ralações!). No entanto, começou a surgir a Geometria e, apercebi-me que o nosso espaço envolvente podia ser descrito por números e letras. Era engraçado ver os seres, os objectos, a natureza, todos limpos de pormenores, de tudo o que pudesse dispersar os nossos sentidos, ajudando a concentrar-nos na sua estrutura, na sua essência. 
Eram quadros em que as formas estavam abertas para acolherem cores, divisões, refracções e, até, intersecções (como na vida, na nossa cultura, na nossa escrita). 
Hoje, os caminhos da Matemática continuam a ser, para mim, indecifráveis, quase insondáveis e, diria mesmo, um mistério. São caminhos que me fascinam, que, simbolicamente, me atraem. 
Hoje, já não é só o jogo, o puzzle. Ou será? Se não, como explicar as pequenas peças que faltam aos matemáticos para explicar o Universo? 

 Ana Santos

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (107)


Leda e o Cisne, Jerzy Hulewicz (1886-1941)
Óleo sobre Linho, 90 x 100cm


A DANÇA DE UM LOUCO
Todos os dias, um homem sério e responsável, de emprego estável, família perfeita, casa grande e carro novo, se levantava cedo. Fazia trinta minutos de passadeira, seguidos de um banho rápido, um copo de água natural e um prato composto de modo exemplar por cereais e fruta fresca.
Todos os dias os seus pais estavam ainda vivos e moravam perto. De caminho para o emprego, a pé, parava e dava um beijo à sua mãe antes de cumprimentar educadamente o dono da papelaria onde comprava o jornal. Aí, olhava com interesse a prateleira dos cigarros e quase hesitava um sorriso por se ter conseguido livrar finalmente daquele vício.
Todos os dias sorria serenamente enquanto continuava o seu caminho até chegar a uma porta onde se lia «HOSPITAL PSIQUIÁTRICO»

Todos os dias um homem completamente louco dançava com um cisne.

Lá fora, a vida fazia-se outra vez enquanto um líquido transparente lhe percorria as veias e lhe fechava os dias num quarto que partilhava com outros doentes. No hospital, uma pena completamente branca era recolhida, já sem surpresa, pelo enfermeiro de serviço e ele adormecia serenamente. 
Todos os dias.


Maria Teresa Bondoso

domingo, 23 de novembro de 2014


 
 
MIRADOURO Nº 44 / 2014




Esperando o sol na música dos homens

O armazém permanecia fechado, o porteiro tinha ido embora há muito e a rede que cercava o terreno tinha sido aberta há pouco.
Músicos de várias origens e instrumentos, com o nome  sempre terminado em “ista” assim é um instrumentista, reuniam-se naquele complexo corroído pelo tempo, nipes de bateristas, pianistas, contrabaixistas, guitarristas, saxofonistas, clarinetistas, trompetistas, trombonistas, violinistas, violoncelistas e cantoras. Ainda que este último não seja um irmão de sangue dos restantes devido ao termo gramatical, era adotado pelos outros como sendo irmão por um sangue comum sem ser o da gramática.
Numa noite em que os músicos haviam chegado e se preparavam  para começar a receber a música vinda não se de onde, ouve-se um forte ruído na porta degradada que dava acesso á cave, era nesta divisão que se tocava  por ser mais pequena e com uma acústica mais própria para quem queria entrar em contacto com musa apolínea. Num reflexo inesperado viraram-se um certo número de ouvidos em primeiro lugar e um certo numero de olhos quase ao mesmo tempo para ver e ouvir  o que se passava. Quase ao mesmo tempo, pois para quem tem o ouvido como instrumento de trabalho dá-lhe pernas maiores do que aos olhos, que os têm só para ver o que os ouvidos ouvem pela partitura.
A porta a cave abriu-se e logo a seguir tombou pelas escadas devido á ferrugem alojada nas dobradiças, chegou o contrabaixista batendo outra vez com o alto do seu instrumento gigante numa lâmpada fundida há mil anos para iluminar a escadas da cave que agora era iluminada a compressor  e holofote enamorados pelo fio elétrico que os juntava.
Descendo as escadas imponentemente do alto do seu instrumento parou e disse: se começassem sem mim não haveria música mas ruído, pois sou eu a válvula por onde a música entra e sai, o motor de tudo o que ela diz entrando-vos pelos ouvidos. Nos músicos presentes, que acabavam de afinar os seus instrumentos prontos para tocar sem o contrabaixo, logo se ergueu um olhar rasgado com as orbitas dos olhos rodando pelo canto do olho de ódio em punho fazendo mira àquele que acabado de chegar se pronunciara. Um rasto de silêncio cortante seguiu caminho á espera da música que tardava em aparecer na cave. O pianista deu três passos, desafiando o outro, com seu ego ferido, a sua cara era calma, neutra, límpida, serena, seus olhos laminas profundas no corte furioso que a cólera trespassava o coração. De branda voz disse: ia-mos começar tocar sem ti, pois também eu tenho harmonia suficiente para chamar a música e ser o motor desta “Jam Session” aliás sou eu quem vos eleva á música não tu a mim nem a ninguém de nós.
Esta ultima frase que nos apresenta aqui em formato de emoções duras foi dita ao acaso não passando pela portagem da  razão ou intelecto, logo foi descartada num flash pelos restantes músicos, mas que deixava a paisagem emocional da cave num estado obeso que nem mesmo uma dieta musical bem digerida era capaz de conciliar a harmonia que brotava dos instrumentos com a harmonia que se fazia sentir dentro do espirito dos homens.
O contrabaixista ri-se com um riso cínico de besta músical observando o tamanho do seu instrumento passando os dedos nas cordas rijas com que estas vibravam. O clarinetista vira-se do seu sítio, conciliador de divergências pelo tom suave e lírico que lhe sai pelo instrumento e diz: Estamos todos reunidos aqui esta noite pela música, ela virá esta noite pela noite fria vindo adentro, e optamos por não haver público porque só nós a entendemos verdadeiramente, e se mesmo nós que a entendemos não nos entendemos entre nós, os nós que nos prendem á musica podem-se muito bem romper com esse fatal ego que carregamos por nossa culpa. Por isso vamos tocar.
Dito isto o contrabaixista acabou de afinar e começaram a tocar esperando pela música, o conflito lá passou mas o espírito competitivo dos homens permaneceu compatível com o ego que os alimentava, sons belos, eufóricos, tristes, alegres, cómicos, trágicos rodeavam a sala agitada a noite foi explosiva de sons, cores musicais e êxtase, esperaram tanto pela música e a música esperou tanto por eles que quando nasceu o sol a sessão acabou os músicos pegaram nos instrumentos e saíram isolados um a um.
Vendo bem e  pelo raiar do sol que já ia alto aos olhos dos homens, na cave agora escura com um fio de luz entrando pela janela partida rompendo o pó sujo de abandono que circulava no ar , uma criança chorava a um canto suja, o ego dos homens ficou ali naquele canto daquela cave a chorar. Naquela noite a Música não apareceu.


                                                                                      Diogo Correia

sábado, 22 de novembro de 2014


PALHAÇO

O riso indiferente do palhaço
faz graça no despenhadeiro circular
da arena. A inconsequência da brincadeira
na falsa impressão de dor e medo.
Confunde a platéia em trejeitos e barulhos
esquecidos no sentido da seriedade. Na ilusão
catatônica das crianças se apresenta
o adulto histriônico. A criança
cresce no momento de se fazer palhaço
pela vida inteira. Arruma o nariz sobre a face
e desconsidera a boca rasgada ao verbo.
A luz acesa permite o reconhecimento.

 
(Pedro Du Bois, inédito)
 


sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Olaia





por Miguel Boieiro



Há duas dezenas de anos, quando mudei de residência, tomei a liberdade de plantar na parte exterior da propriedade, em pleno domínio público, duas olaias. Embora com a melhor das intenções, cometi conscientemente uma ilegalidade, porque era a Câmara Municipal que deveria gerir o espaço. Todavia, talvez devido ao alto cargo que então desempenhava, ninguém me confrontou com tal irregularidade. Digo irregularidade, pois me parece mais consonante com a falta cometida. Afinal, “ilegalidade” seria um termo demasiado pesado para tão fútil ocorrência.

Logo a seguir ao 25 de abril de 1974 fiz parte de uma Comissão de Moradores e não queiram saber as melhorias que introduzimos no bairro, tal a ânsia de lutar por uma melhor qualidade de vida e a vontade de ajudar a construir um país novo. A Câmara fornecia os materiais e a população arranjava os passeios, limpava as ruas, construía parques infantis e jardins. Creio bem que as comunidades locais obteriam grandes vantagens se retomássemos a mesma filosofia e não ficássemos passivamente à espera que as Câmaras fizessem tudo,

Nessa altura, muitas árvores plantei! Umas frutificaram, outras não.
Mas voltemos às minhas duas olaias. Uma, pelo facto do terreno ser barrento e pouco drenado, acabou por secar. A outra fez-se uma árvore esbelta que todas as primaveras se reveste de lindas flores cor-de-rosa. Ela inspira-me, transmite-me otimismo e confiança, conquanto reconheça que não é propriamente minha. Embora a regue cuidadosamente quando o estio aperta, ela pertence por inteiro à “res publica”, melhor dizendo, é de todos e todos podem desfrutar da sua beleza.

Mas deixemos as banalidades do introito e vamos lá caracterizar esta simpática criatura vegetal.
A Cercis siliquastrum é uma pequena árvore originária do sul europeu e do sudoeste asiático que pouco ultrapassa os 10 metros de altura. As folhas são pecioladas, alternas, cordiformes, verdes claras ou glaucas, caindo completamente no inverno. Na primavera, antes de aparecer a nova folhagem, a árvore fica coberta de flores rosadas que surgem em profusão nas ramagens e no próprio tronco. As sementes estão involucradas em vagens (silícuas) que lembram as da alfarrobeira. Daí lhe vem o nome siliquastrum. Cada vagem costuma ter uma dezena de grãos acastanhados que germinam com relativa facilidade, originando um crescimento inicial bastante rápido.

A Cercis siliquastrum é muito mais útil do que muita gente pensa, porque não se limita a ser uma árvore ornamental. Para já, pertence à família das Fabáceas ou Leguminosas, o que significa que capta azoto diretamente da atmosfera e liberta-o no solo, através das suas raízes, que assim fica mais enriquecido, favorecendo outras plantações. Depois, dizem os especialistas, que ela aloja insetos, do grupo dos Psylliodes que devoram outros insetos predadores, os quais aparecem na primavera nos pomares (macieiras e pereiras). Espantados? Mas há mais! Sabiam os estimados leitores que as flores das olaias são comestíveis? Possuem um sabor acidulado levemente picante, como as chagas ou as alcaparras, podendo integrar com requinte as saladas crudívoras. Também os rebentos podem ser usados como condimento, especialmente em pickles.

Os japoneses acrescentam-lhe ainda outra vantagem: a boa adequabilidade para a arte do bonsai.
Os princípios ativos encontrados na olaia denotam riqueza em vitaminas e sais minerais.
Em medicina popular usa-se o cozimento da casca para reduzir o catarro, sendo os frutos utilizados como adstringentes.


Perante tanta informação, subsiste um mistério cuja decifração só é acessível aos crentes. Dizem uns que o apóstolo Judas Iscariotes, o tal que traiu Cristo em troca de trinta dinheiros, se enforcou numa figueira, enquanto outros sustentam que foi numa olaia. Daí, a mesma também se denominar árvore-de-judas. Resta acrescentar que a árvore é, em Israel, uma espécie protegida. De tal facto será possível extrair várias ilações. De entre elas poderia ser (porque não?), a necessidade de preservar a possibilidade doutros enforcamentos naquelas conflituosas terras?

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

"Fazer acontecer", "produzir"?


Não se mudará o paradigma enquanto se pensar em termos de "fazer acontecer", "produzir pensamento" ou outra coisa e se quiser organizar, regulamentar, avaliar e controlar tudo. Esse é o paradigma voluntarista, produtivista, economista, empresarial e tecnocrático da civilização industrial e do esclavagismo trabalhista que está a entrar em colapso, destruindo o planeta e a vida. Quem assim fala mostra que vive enfeitiçado pelos ritmos do formigueiro antropocêntrico, permanecendo à superfície das regiões profundas do ser onde tudo emerge em fluxo autorregulador, espontâneo e livre. Quem assim fala porventura faz coisas, mas não age. Quem assim fala porventura produz pensamentos, mas não pensa. Quem assim fala porventura produz textos, mas não escreve. Quem assim fala porventura "faz amor", mas não ama. Quem assim fala, pertence ao passado, por mais que fale em futuro. Quem assim fala, mais valia estar calado.


Paulo Borges



terça-feira, 18 de novembro de 2014

FANTASIANA E OUTROS LUGARES

PENSAVERSANDO


Por meus olhos ... 


Por meus olhos cerrados
Vagueiam mil vozes
Dispersas aos quatro ventos.
Cruzam-se mares
E sentem-se vidas
Sete vezes perdidas
Sete vezes abraçadas.
Por meus olhos abertos
Passa a vida num ai,
Pela mão de um fio
 De um papagaio azul!

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (106)

O Baloiço, Fragonard, 1767
Óleo sobre Tela, 81x64
BALOIÇO

era uma total e completa sensação de liberdade

como rir na cama, em vez do amor… 
como o pensamento, sem palavras de agarrar… 
como eu à tua espera, de certezas sem urgências 
como a vida 
plena e cheia 
cumprida

uma imensa e completa felicidade

se eu a dissesse
também tu a viverias
esse completo momento eterno 
num segundo 
como o amor, em vez do riso…
como as palavras, sem pensamento… 
como a urgência da certeza, sem esperas… 

a vida a cumprir-se lentamente

eu andava de baloiço junto ao mar
o baloiço era feito de pau e de corda
e de uma total e completa sensação de liberdade


Maria Teresa Bondoso

domingo, 16 de novembro de 2014

 
MIRADOURO 43 - a / 2014
 
(porque ainda é domingo,
se comemoram os 500 anos do Foral de Alhos Vedros 
e estivemos ainda à pouco na Capela do Rosário)
 
 
 
FESTA
e depois aquele som…, não se sabe se antes se depois...,
um som, como direi, um som, como se o som se estrelassace em cascata luminosa fragmentando-se em mil partículas, leito abaixo ou leito acima, enquanto cornucópias trepadeiras trepam e espargem aromas-notas que penetram e tornam visível, por palpável,
o tempo
em suas diversas equações
ligadas ao espaço.
 
 
MJC
 

Foto: Edgar Cantante
 
 
MIRADOURO 43 / 2014
 
 
Pois, as sirenes deixaram de se ouvir à medida que as fábricas foram parando a sua laboração.
Acabou a correria da manhã, o passeio curto à hora do almoço, o bulício do despegar.
O colorido das fardas das operárias apagou-se das ruas.
As pessoas ficaram desempregadas.
Eram milhares só aqui em Alhos Vedros.
Ficaram os edifícios que com os anos se têm vindo a degradar até hoje não passarem de ruínas a ameaçar desmoronamento a qualquer momento.
E ficaram também muitas histórias.
Umas já contadas, muitas outras decerto ainda por contar.
Memórias que ora repousam calmamente no interior que albergamos, ora se agitam e revolvem a consciência feita espelho de sonhos que existiram e se projectam nos novos sonhos que se arquitectam nas sirenes com que a vida sucessivamente nos convoca.
 
Manuel João Croca
 


Foto: João Ramos

sábado, 15 de novembro de 2014

Ponto de Vista


A reforma política (bandeira dos todos os candidatos à atual presidência) é uma ação necessária e de consenso geral (povo, PT, PSDB, PSD...). É mais que acabar ou não com a reeleição e com o voto proporcional. É conhecer a força popular no que é voto distrital, é saber como funciona o Sistema majoritário, é mexer numa estrutura política complexa, eleitoreira, viciada e acomodada. Reformá-la é uma questão que exige seriedade, conhecimento profundo das leis políticas do país, o que são e fazem, as composições e coligações partidárias, quais são suas prerrogativas e delegações políticas. A imensa maioria do país vota sem saber nada disso, “emprenha” pelo ouvido aquilo que diz, o que mais alto grita!
O país precisa de leis feitas às claras, por quem tem conhecimento e competência para isso, e depois de elaboradas, apresentadas e aprovadas (ou não) pela população, para então serem promulgadas. Tudo feito de acordo com a nossa Constituição.
No Brasil, o Congresso Nacional (órgão de âmbito federal eleito pelo povo para legislar, fiscalizar e controlar o governo), é que tem essa atribuição. O que se deve fazer é cobrar do Congresso uma decisão.
Com a desculpa de consultar as ruas, a presidente quer passar como um trator por cima de tudo isso, tirando do Congresso Nacional a sua função e representação legítimas! Então para que servem as nossas Instituições se não são respeitadas pela cúpula política da nação?... E onde ficam as regras da nossa democracia? Isso não é constitucional e nem desejável.... O povo que elegeu Dilma também elegeu os Senadores, deputados,...nossos representantes legítimos, no Congresso Nacional.

Uberaba, 31/10/14
Maria Eduarda Fagundes

sexta-feira, 14 de novembro de 2014


Vazio de musgo quente e violino frio

mil poemas a meu amor querido hoje tão junto de mim, Solange,

tocam no vazio os anjos de carne branca e morena
escondem com o violino o musgo desejado, toco
os seios até à água do oceano, lindas, 22º graus
como tangerinas e mangas no pequeno mercado da
visconde da luz, um brilho de corpo a corpo no movimento
da tarde as mulheres conhecem melhor os prazeres da
areia e da pedra em Cascais amanhã há vida é sábado nos
mercados de Carcavelos e na linha, quem compra pinhões,
nozes, mel, pão saloio, e um violino na rua deusa romena a
tocar no invisível espaço em que o imaginário romeno é
conhecido em Portugal - falta o Drácula de Sibiu e chegam
os vagabundos de Bucareste

José Gil 



terça-feira, 11 de novembro de 2014

FANTASIANA E OUTROS LUGARES


Andando pelos corredores da memória, detenho-me num quintal rectangular. 
Era um quintal com muitas flores, brincos de princesa, patáleas, lindos jarros e, a um canto, junto à minha porta, um marmeleiro e muitas flores. Ao fundo, um grande poço (no Verão, não sei se a minha mãe regava mais as flores ou os meus pequenos pés, se calhar por me achar a sua flor!). 
Era um quintal para o qual davam três casas: a minha, a dos meus avós paternos e a de uma tia do meu avô, a Ti Francisca. Era pequenina, magrinha, cabelo todo branco apanhado em carrapito (segundo contam, seria o contrário da irmã Ana, que chegou a viver connosco). Muitas vezes bebi leite numa caneca com uns gatos pretos brincalhões, muitas vezes, apreciei uma caneta de aparo em prata – que não sabia, claro – e observava um candeeiro amarelo torrado que podia baixar e subir e, quantas vezes, para comer, não tive como companheiro um macaquinho em loiça, que ainda hoje o guardo. Este boneco, um paliteiro, tinha-lhe sido oferecido por um jovem que o ganhou numa rifa da quermesse vendida pela ti Francisca; era ela muito jovem e bonita. Aí começou o namoro e, mais tarde, deu-se o casamento com o tio Alberto. Em frente da casa da Ti Francisca ficava a dos meus avós. Lá, lembro-me de procurar novidades, ver fotografias velhas e de ouvir relatos da bola, ao domingo. Era um radio e tanto! 
A minha casa ficava perto do portão, à esquerda quando entrávamos. Para as minhas lembranças, era o cantinho das histórias que a minha mãe contava, como a da carochinha que usava lenço às bolinhas, dos meus passos de bailarina ao longo do corredor, de encantos escondidos num guarda-fatos, da ti Ana, de chapéus de veludo e plumas; era um cantinho com uma chaminé grande e alta, onde na noite de 24 de Dezembro eu queria oferecer umas meias ao menino Jesus; era um cantinho enfeitado com rendas de papel. 
Em frente da minha casa, uma divisão onde estava a selha de madeira para lavar a roupa. ... 
Um dia mudámo-nos. O espaço modificou-se. As casas foram vendidas. Hoje, relembro e vejo-me com os meus bibes, as minhas pequenas tranças e laçarotes. Revejo-me e divirto-me com a minha figura de palmo e meio. 

Ana Santos 
2002

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (105)

SERENIDADE Moinho de Maré de Alhos Vedros
Foto de António Tapadinhass


*DE ALHOS VEDROS ATÉ ALÉM

Mouros e que mais
aqui moraram?
Caçavam os de antes
como nós caçamos?
Que sabemos nós, se de nós apenas caçados nos 
sabemos.
Não há vestígios de pistas de galgos
nem de golfe,
ou pólo.
Os cogumelos continuam a vir com as 
primeiras chuvas.
Os cães defecam aromas.
O Tejo aqui e sempre à mão de semear,
alterado e paradoxalmente
certo.
Inexpressivas as crianças
contemplam poliedros,
segredando recados
 em bicos de pés.
O verde,
o vermelho
alternam com sombras
parindo abertas,
em sucessivas investidas.


Leonel Coelho

*Título da 7.ª e última conferência do Foral e local onde se vai realizar