segunda-feira, 1 de abril de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (22)

Pescador em Valência, Joaquin Sorolla, 1904
Óleo sobre Tela, 75x104 cm


HOMENS-MENINOS
As suas histórias são um emaranhado de tristezas tal, que recusam crescer. Acho que preferem ficar meninos, para não terem que seguir os passos daqueles que os abandonam ou maltratam ou, simplesmente, os ignoram.
São quase homens, mas permanecem meninos nas atitudes e nos comentários. Gostam quando lhes levo canções e filmes. É assim que vamos trabalhando sem eles darem por isso, porque fizeram questão de me avisar que não estavam disponíveis para trabalhar.
Temos aprendido a gostar uns dos outros. Mas sem o mostrar, porque isso seria encarado por estes homens-meninos como um sinal de fraqueza: só se pode gostar de miúdas e mesmo assim tem que ser às três de cada vez, porque assim não se gosta verdadeiramente de nenhuma. Porque gostar é coisa de fracos – dizem eles!
Quando estive doente o Miguel perguntou-me porque não fui naquela sexta-feira: ‘Porque estive doente’, respondi-lhe. ‘Ah, esteve doente com alcólicas?’ perguntou-me ele. ‘Com quê, Miguel?, voltei eu a perguntar, já tentando esconder uma gargalhada.’Ah, esqueça, alcólicas é o que as mulheres grávidas têm quando estão a ter os filhos!’, voltou a dizer o Miguel, do alto da sua sabedoria! – este comentário valeu, pelo menos, dez minutos de explicações…
O Diogo espera ir ter com a mãe à Irlanda já há dois anos – foi deixado aos cuidados de um ex-padrasto, depois de uma vizinha e agora parece que apareceu uma avó! E o Gabriel, que é tio do outro Miguel (não o das ‘alcólicas’) passa as noites a ver televisão – os canais de desenhos animados até ao encerrar e depois um daqueles canais com uma bolinha vermelha no canto superior direito – por isso já tem adormecido no meio de uma ou outra actividade!
Alguns sabem pescar como ninguém, suspensos nas rochas batidas pelo mar revolto, e conhecem os nomes de todos os peixes que nadam por estes mares! Outros conhecem de cor todas as partes que compõem um motor de um automóvel! Outros, ainda, sabem tudo dos ventos, das luas e das marés! Mas todos ficam com uma lágrima que teima em querer saltar ao ver ‘A Verdadeira História do Capuchinho Vermelho’, um filme de animação sugerido por eles e previamente didactizado por mim, para que eles pudessem aprender sem dar por isso!
Logo a seguir ao Natal levei-lhes um ‘poema visual’ do cummings – foi uma aventura! E eles fizeram poemas visuais sobre o Natal. E gostaram! E eu também!

8 comentários:

Luís F. de A. Gomes disse...

E nós ainda mais, por ver tanta Humanidade na desumanização que um mundo madrasta provoca no coração e na alma dos meninos que um dia se encontram homens, sem jamais entenderem a meninice que lhes faltou ao virar da esquina dos dias.

Foi o Soeiro que um dia escreveu um romance dos e para os homens que nunca foram meninos. Há quantas décadas foi isso? E essa é a tristeza que nos avassala, o ter sido ontem que aquela dedicatória foi escrita e o ainda ser amanhã que o mundo justo, um mundo mais justo, não está ali à mão dos nossos desejos.

É lento e penoso, o caminho da emancipação do Homem.

Como eu te admiro por toda sensibilidade e beleza, minha querida amiga.

Luís

Unknown disse...

E assim se passa, certamente depressa, a querer aprender... porque penso que, mesmo não querendo ainda, se quer que seja esse o ponto de chegada. Só assim se pode reverter um processo que, estranhamente, terá deixado meninos (mesmo sendo meninos-homens) sem vontade de aprender. Seymour Papert dizia,penso que no seu fabuloso livro "A família em rede", que as crianças possuem uma curiosidade apenas semelhante aos cientistas. Esse grande senhor da matemática e o seu texto puseram-me por aqui a pensar quantos de nós não seremos responsáveis pela destruição desta curiosidade / desejo de aprender... a escola terá aí certamente a sua parte de culpa. E a escola é feita de pessoas. Também de mim...

Amélia Oliveira disse...

António:

Obrigada pelo 'Pescador em Valência'! Como sempre uma escolha fabulosa! Certamente que o irei trabalhar com os meus Homens-Meninos e acho que eles irão gostar!

Um abraço,
Amélia!

Amélia Oliveira disse...

Luís Gomes:

É dolorosa a má-sorte de tantos desses meninos com que nos cruzamos e que, sabemos de antemão, dificilmente deixará de os acompanhar pela vida fora! Por isso temos a obrigação de tudo fazer para lhes dar um pouco de meninice - juntamente com as aprendizagens!
De resto, muito obrigada pelas tuas palavras tão gentis, meu caro amigo!


Teresa,

Sim, aos poucos, quase com pinças, acabamos por atingir o ponto de chegada que se pretende e que, por vezes, tão impacientes nos deixa porque demora... E SIM: a escola é feita de pessoas - também é feita de si e de mim, como já por diversas vezes temos falado (devo dizer-lhe que este textinho foi escrito após uma dessas nossas conversas!)

Abraços, minha cara amiga!

Amélia

MJC disse...

A melhor forma de ensinar será, porventura, essa mesmo:conseguir que as pessoas aprendam sem dar por isso.
Não cansa,é eficaz e uma forma de Arte que nem todos conseguem praticar.
Também acho delicioso a aprendizagem do gostar. Do outro. E quando tal ganha uma dimensão colectiva - cada um por si e todos aprendermos a gostar uns dos outros - é ainda uma outra forma de Arte, entrando mesmo já na esfera da sabedoria.
Bem, ao fim e ao cabo, o que apetece mesmo dizer é que essa é uma comunidade que apetece.
Se calhar há aqui algum excesso de romantismo da parte de quem só é espectador à distância mas, pronto, é o que se sente ou, pelo menos, o que eu senti.

Um abraço.

Manuel João

A.Tapadinhas disse...

Amélia Oliveira: Vi uma exposição de Sorolla, há bastante tempo em Portugal. Tinha poucas obras maduras do pintor mas dava para perceber a sua genialidade.

As obras de que mais gosto são as cenas de praia em que a luz vibrante do sol salienta o brilho dos corpos molhados, ou das insólitas harmonias das vestes dos pescadores, obtido com rápidas pinceladas que dissolvem os volumes na claridade iridescente.

O seus Homens-Meninos habituados à luz de Lagos... claro que vão gostar!

Abraço,
António

Amélia Oliveira disse...

Manuel João,
Obrigada pelo seu comentário, que contém essa dose de romantismo que refere! Num mundo ideal seria como diz, no mundo real temos dias: uns que correm muito mal, outros que correm mal, outros bem e outros ainda muito bem! São estes últimos que nos animam e nos dão forças para ir em frente e tentar fazer melhor! E, às vezes, saem lindas aguarelas...

Um abraço!
Amélia

Amélia Oliveira disse...

Obrigada, António! Dar-lhe-ei conta do resultado - não me esquecerei!

Abraço,
Amélia