Mahler traz-me à memória, posso falar assim, os meus amigos Félix e Éster que não mais vi e de quem nada mais soube desde o dia distante em que se despediram com um até logo e entraram para o táxi que os levou daqui. O que será feito deles? Onde estarão? Como viverão? Será que estão bem? Terão filhos? Sequer sei se ainda estarão vivos, muito embora seja esse naturalmente o meu maior desejo, tal como o de que se sintam felizes e com saúde, estejam lá onde estiverem. A amizade é um sentimento curioso. À semelhança da paixão surge por acaso e sem que tenhamos que explicar porquê. Nasce da empatia e consolida-se pelo trato, mas já não depende deste para se manter pois, ao contrário da paixão, não é um afecto fugaz e resiste à separação dos amigos que desse modo se vêem para todo o sempre, a menos que algo muito forte aconteça no sentido de lhe colocar um ponto final. E eu tenho a certeza que se os voltasse a ver, hoje, os abraçaria com o mesmo carinho que procurei transmitir no momento da despedida e se haveria de gostar ouvi-los contar as peripécias dos tempos de hiato, seguramente reataria conversas de antanho com a mesma vivacidade e a frescura na memória como se estivéssemos perante a continuação de um dia seguinte. Daquilo que conheci deles e a década de convívio e partilha de vida foi intensa e demasiadamente difícil e árdua para que se não revelasse o carácter e a capacidade de cada um de nós, pelo que me foi dado saber dos respectivos percursos, sinceramente jamais estranhei o silêncio e a incomunicabilidade a que ambos se remeteram e quando até o Artur deixou de ter para onde enviar o que ia narrando deste nosso pequeno mundo e de como a escola de música deu frutos e a pesquisa que haviam iniciado se foi robustecendo ao longo das muitas caminhadas e serões de trabalho persistente e metódico, nem aí me admirei que repentinamente e sem qualquer explicação, daqueles companheiros apenas tivesse ficado a sensação de se terem esfumado, simplesmente desaparecido por algum desses caminhos do mundo. Infelizmente vivemos num país mentalmente pequenino, desde logo por todos os dias andar submetido à capação de ideias, não vão formularem-se aquelas que possam levar a inquietação a expressar a vontade de alterar o rumo das coisas, igualmente pelo facto de termos apenas acesso a notícias coarctadas pela censura e, em tal estado, acabarmos por tão só conseguir um reduzido número de dados e um parco conhecimento sobre uma série de assuntos e outros tantos eventos. Editam-se poucos livros e vendem-se ainda menos e as possibilidades de aquisição de publicações estrangeiras que já de si aqui chega muito escassa, é complicada e desesperadamente morosa. Para além das trivialidades, os jornais não passam de uma pequena, não será exagero dizer, uma pequeníssima janela sobre o que se vai passando lá fora e as rádios não têm entre nós uma tradição de relatar o que se passa fora dos noticiários e, sem paralelo à excepção da importância de um conflito como foi a segunda guerra mundial, raramente fazem uma reportagem no exterior de um país estrangeiro. Pode ser que a televisão altere isso um pouco e contribua para nos aproximar um pouco mais da realidade mundial, no entanto não acredito que o possa fazer numa cultura censória como é a nossa. É pena, mas é assim que as coisas se passam entre nós. Seja como for, por isso sei pouco sobre Israel e muito menos sobre como se vive lá. Não será muito difícil de imaginar que a população vá passando por algumas dificuldades e a vida, ali, não seja propriamente dito um mar de rosas, afinal trata-se de um estado recente e onde haverá muito a fazer para alcançar os padrões de vida das nações mais ricas, para além desse aspecto fundamental de ter por vizinhos inimigos declarados e implacavelmente empenhados na sua destruição, tal e qual um prisioneiro que partilhasse a cela com quatro outros que pretendessem aniquilá-lo e que, na verdade, por repetidas vezes lhe fizeram a guerra, muito embora, pelo menos até agora, sempre tenham sido derrotados. Se é daí que parte a razão de ser desta falta de contactos daqueles amigos, não sei. Não me espantaria que o fosse, mas pelo empenho que me lembro de os ver pôr em tudo o que faziam, o mais certo é que tenham desligado por mera falta de oportunidade para escrever as novidades ou simplesmente perguntarem como estamos. Tenho-os no coração e sei que andem por onde andarem, sempre desejarei o melhor para eles que é a felicidade que podemos ir encontrando na vida que levamos. O mundo é que parece ter dado um trambolhão que anda de pernas para o ar. Esta lógica da disputa entre os dois blocos que a guerra da Coreia veio a estabelecer como irredutíveis e inconciliáveis e que mesmo depois das teorias da coexistência pacífica entre os dois sistemas, defendidas pelo líder soviético Nikita Krutchov, tudo indica permanecerem na intenção de combater o outro sem tréguas, algo que pode até derivar num conflito atómico que seria uma perfeita tragédia –ainda hoje morrem pessoas no Japão por causa dos bombardeamentos de Hiroxima e Nagasáqui – a lógica desta disputa tem provocado alterações que mais se assemelham a contra-sensos que à própria defesa dos interesses de que aqueles se reivindicam. Depois de ter sido um dos primeiros países a reconhecer Israel e de até haverem afinidades entre os ideais de que o Félix chegou a falar nas cartas que remeteu para o Artur a respeito dos kibutz e as cooperativas socialistas que fazem a agricultura colectivizada de muitos países comunistas ou socialistas, como eles dizem, mormente na União Soviética, esta, desde o problema do Suez em que Nasser enfrentou e derrotou ingleses e franceses, é a principal ou pretende vir a formar-se como a principal aliada dos regimes nacionalistas que se estão a estabelecer entre os estados árabes daquela região do mundo. Por sua vez, os Estados Unidos da América, a outra grande potência rival, apesar de ter combatido e vencido a Alemanha nazi e os seus aliados do Eixo, em particular o Japão com quem travou directamente o conflito mais duro, em nome da liberdade e da democracia, andam agora a apoiar tudo o que há de pior nas ditaduras que têm por ideologia a forte e feroz oposição ao comunismo. Aliás, deve ser por isso que Salazar lá se vai conseguindo manter no poder e Portugal movimentar-se nas teias das relações internacionais, agora que enfrenta a guerra pela independência nas três maiores colónias africanas. Há quem diga que assassinaram o Presidente Kennedy porque ele queria retirar as tropas americanas do Vietname e fazer a paz com os vietnamitas do norte que instalaram aí mais um dos regimes comunistas no continente asiático. Pessoalmente não acredito nisso pois até foi durante a sua presidência que os militares americanos começaram a desempenhar um papel directo naquela guerra que há muito estalou na antiga colónia francesa. Além disso, pelo modo enérgico como reagiu ao problema dos mísseis que os russos queriam instalar em Cuba, não me parece que ele fosse muito dado a grandes contemplações para com os povos que decidiram enveredar pelo socialismo e estou convencida que tudo estaria igual se ele estivesse vivo, continuando Salazar a tirar partido da missão de que se reclama de conter a expansão do comunismo no mundo, particularmente em África que bem agitada anda por tais ideais e com isso a resistir a esta estrondosa onda de choque que abalou este nosso Portugal e que ao contrário do que eu esperava não deixa rasto de poder vir a provocar a alteração do regime, pelo menos nos tempos mais próximos. E depois os negócios têm aumentado a olhos vistos e se mais conseguíssemos produzir, mais conseguiríamos escoar para Angola e Moçambique, sobretudo para a primeira e até já tivemos que desviar transacções que temos com o Brasil e alguns países europeus e isto porque as autoridades não veriam com bons olhos qualquer falta de empenhamento no esforço nacional para mantermos aqueles territórios sob administração portuguesa e esses ganhos que obtemos, mais ou menos chorudos outros obtêm e essa é uma torneira que, a manter-se, deixará que brote aquilo que continuará a lavar os crimes e todas as injustiças que o salazarismo tem feito os portugueses viverem.
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