3º. CADERNO
Sinceramente não sei se tanto eu como o Manuel estamos a saber lidar com estes novos sinais dos tempos que andam por aí, não propriamente por aqui, nesta santa terrinha que a PIDE e a censura ainda vão mantendo a salvo da refrega das ondas e onde as novidades sempre acabam por chegar com o selo vetusto do que ficou para trás, mas mais lá fora onde a agitação das juventudes se vai misturando na contestação à presença americana no Vietname com a crítica aos costumes que nestes últimos dois séculos se têm consolidado nas sociedades mais abastadas e desenvolvidas do planeta. É claro que sempre houve a irreverência dos mais jovens perante o convencional e o estabelecido, coisa que já Victor Hugo usou enquanto matéria de romance como o atesta “Os Miseráveis” ou o ilustram as personalidades de um Carlos da Maia ou um João da Ega que o nosso Eça tão genialmente inventou. Tenho até para mim que essa será uma das tensões próprias da Humanidade, a oposição entre o velho e o novo, os equilíbrios que se estabelecem entre a defesa de uns face aos avanços do outro e não errarei se defender ser esta uma das molas das mudanças sociais de que resultam novas situações e configuram aquilo que vulgarmente tomamos por progresso. Assim, não será bem isso que me assusta, pois, em princípio, tê-lo-ia como mais ou menos natural. Acontece que eu, na idade que os meus filhos têm agora, ou antes, as pessoas da minha idade e geração, mesmo tendo em conta todos as condicionantes de uma sociedade fechada e provinciana como aquela em que fomos criados e, basicamente, permanece no presente, nós queríamos ser como os nossos pais, apesar de podermos considerar que determinados hábitos nos parecessem ultrapassados, certas maneiras de pensar se nos afigurassem como retrógradas – qual era o mal em acompanhar o Manuel naquelas conversas e animadas discussões da “Brasileira”, ou o de algumas das minhas amigas fumarem como os homens? Porque não poderia eu sair sozinha com o Manuel sem ter a certeza que me haveria de casar com ele? – nós, apesar dessa reacção normal em jovens que pensam e procuram agir pela sua própria cabeça, fundamentalmente, nós queríamos ser como os nossos pais. Sabíamos que pretendíamos vir a ser adultos responsáveis e respeitados, tal qual eles o eram, querendo por isso encontrar uma profissão, um modo de vida e vir a viver como eles, afinal, tinham vivido. Era isso, precisamente, o que se esperava de nós e é o mesmo que nós acabamos por esperar dos nossos filhos. Ora é ai que as realidades se chocam e começa a minha incerteza quanto ao estarmos a agir bem, especialmente em relação ao Carlos Manuel, uma vez que o mais velho, pese embora todo o folclore em que imita os padrões berrantes da moda, a nova vaga, como eles dizem, acabou de entrar em medicina e dá mostras de querer vir a seguir as pegadas do avô e enveredar por uma carreira de médico e, como desde muito novinho tem mantido esse objectivo e lutado obstinadamente por ele, tendo sido sempre um excelente aluno, com isso certamente acabará por repetir o decurso que a vida deve ter. O irmão é diferente. Eu reconheço que no caso da nossa sociedade se junta ainda o impacto do espectro da guerra que não dá mostras de ter fim à vista, muito pelo contrário, Portugal vai ficando cada vez mais isolado e os movimentos que lutam pelas independências vão recebendo, por seu turno, mais e mais apoios sem que por isso haja qualquer indício de que podem vencer militarmente o conflito e que isso, em conjunto com as novas ideias de liberdade de comportamentos e atitudes, ainda mais num país em que rapidamente os jovens com a educação dos nossos, se apercebem de ser um campo árido para tais experimentalismos, seja gerador de uma angústia que a falta de perspectivas faça explodir em revolta mais ou menos explícita e acentuada. E também não é o facto de o rapaz ter decidido deixar crescer o cabelo e as barbichas que lhe vão despontando por entre o acne, nem mesmo as roupas mais descuidadas que lhe agrada vestir, nada disso é aquilo que me assusta e perturba. Lá está a antiquíssima tensão entre o velho e o novo que nada teria de pouco habitual. Ainda que eu não o entenda muito bem e, portanto, sem que saiba porquê, algo aconteceu para que um grupo de rapazes ingleses tenha ganho uma notoriedade no campo da música ligeira que os catapultou para o primeiro plano das atenções e das vendas a nível mundial. A maior parte do que fazem os outros conjuntos do género que se lhes seguiram e os imitaram, pura e simplesmente não me agrada. Ouvido com atenção, quanto a mim, para não dizer todos, na larga maioria dos casos, tudo se resume a gritos e barulheira em que mal se distinguem as notas. Mas devo confessar que desses “Beatles” há temas que me agradam, muito melodiosos e cheios de imaginação. Há algumas canções, se assim as posso apelidar, um tanto esquisitas e que custam ou pelo menos a mim custam a entrar no ouvido, mas mesmo algumas dessas acabei por gostar de ouvir. Mas atrás das músicas veio o conteúdo das letras que expressam novos desejos, novas vontades de afirmação e com isso as ideias críticas em relação às sociedades e à maneira de viver que temos. Ele há ideias simplesmente abjectas, como essa de uma mulher poder ter vários homens e um homem partilhar várias mulheres, coisa que sabemos ser prática em muitos mundos atrasados, em todo o caso, naqueles novos discursos, mais por motivos de liberdade individual que por hábitos tradicionais que até consagram a dependência e a subalternidade feminina entre esses grupos sociais. Mas o que mais me inquieta é a recusa que manifestam relativamente às culturas em que vivemos, é a oratória que proclama a destruição dos moldes em que estabelecemos as nossas vidas, é isso o que mais me atemoriza e é com isso que eu não estou mesmo nada certa de saber estar a lidar no que ao Carlos Manuel confere. Aqui neste pequeno paraíso, seria de esperar que a morte do filho do Palma, em Moçambique, a morte estúpida e absurda de um rapaz cheio de vida e um futuro do tamanho da vontade e da força em pleno que tinha, se misturasse com os receios de enfrentar a guerra que pairam na mente dos outros nossos rapazes. Contudo, no meu filho mais novo isso funcionou como uma lente de aumento da contestação que lhe tenho vindo a ouvir fazer relativamente ao porquê de ter que viver com horários e obrigações quando o viver é tão simples como apenas viver todos os dias, com os correspondentes reflexos nos objectivos que necessariamente se vão traçando para atingir um caminho próprio na vida que, naquilo que ele defende, tendo por encravado na distância a guerra, nem mesmo tem que ser planeada, pois tudo pode acabar repentina e abruptamente, como o que sucedeu ao César bem o deixou claro. Por vezes discutimos, mas a impressão que me fica é a do desperdício de tempo e que isso tão só tem contribuído para lhe acicatar mais a raiva e, como é fácil de perceber, não o poderíamos proibir de pensar assim. Mas fica-me a dúvida e essa incerteza martiriza-me, dilacera-me, pois ficaria triste se, por qualquer motivo, aquele meu filho não procurasse viver como pessoa de bem. O senhor Abel diz-me que não temos grandes motivos de preocupação, alegando que tudo o que nós poderíamos ter feito já o fizemos que foi colocar-lhe as sementes de um bom carácter que, tal como afiança, no fundo ele tem. E tenho que reconhecer o quão pacificante foi ouvir-lhe a sabedoria dita em palavras simples que, por muitas voltas que demos na vida, por muitos maus caminhos que até possamos vir a trilhar, aquelas marcas mais profundas virão um dia sempre ao de cima, pois são aquelas que, por estarem tão no centro do que somos, nunca sofrem qualquer alteração. “-E essas, meus queridos amigos…” –Foi assim que ele concluiu, fomos nós capazes de lhe introduzir bem no íntimo. “-Vocês têm ali um excelente filho e uma excelente pessoa.” –Rematou.
Mas fica a perplexidade e a perturbação. O que será o mundo dos nossos netos?
Sem comentários:
Enviar um comentário