FOLHAS SOLTAS
Grande é o homem que tem a ousadia de plantar árvores e a humildade de saber esperar pelos proventos que a geração seguinte terá por seus, pois, quando plantamos um sobreiral, quando na terra deitamos as sementes de um pinhal, sabemos que só mais tarde poderemos apurar se os frutos que colhemos valeram a pena o esforço e a paciência. É o melhor paralelo que posso encontrar com esse outro arvoredo que são os filhos que legamos ao mundo. Também aí se trata de semearmos para colhermos mais tarde e igualmente de sabermos ir tratando, com todo o cuidado e carinho de que sejamos capazes e ter a visão de esperar que todo o trabalho que fizemos resulte num mundo que aos mundos acrescente algo de bom. E é justamente isso que hoje nos dizem os filhos que temos, já crescidos, uns ainda cobertos pela penugem que por ora os mantém no ninho, outros dando caminho às asas que batem segundo a sua própria vontade. Agora podemos olhar para trás e dizer que criámos bem os nossos rapazes e raparigas, fomos suficientemente inteligentes para reunirmos sólidas condições para lhes proporcionarmos um crescimento com a liberdade bastante para se irem afirmando por si e a responsabilidade necessária para darem conta das exigências a quem se vai preparando para vir a ser alguém e acima de tudo com a preocupação de considerar e respeitar valores de paz e sã convivência com o próximo e obviamente o de procurar ganhar a vida de forma honesta. Ora é esse o balanço que todos estes anos passados nos possibilitam neste momento e isso ainda acende mais a revolta que sentimos por enterrar os restos mortais de um desses que uma emboscada no Norte de Moçambique ceifou. O César, o filho do Francisco Palma e da Lisete que pareciam dois farrapos atirados ao chão na sombra do pinheiro manso onde a sua lápide faz agora companhia às duas que lá estavam, entre elas a da minha querida mãe de quem guardo tantas saudades. Na flor da idade, assim foram repentinamente apagados os sonhos de um rapaz inteligente e valoroso que preferiu o trabalho com os animais aos estudos e que ia escrevendo dos planos que tinha para mecanizar ordenhas e reconfigurar produções quando aqui voltasse e pudesse finalmente casar-se com a Sarinha, uma das filhas do Gustavo e da Viviana que entrou num estado de depressão que ainda mais adensa a raiva que experimentamos pela inutilidade daquela morte. Criamos nós um filho com tanto amor para que a demência de um regime caduco e retrógrado o atire para uma guerra que não tem qualquer sentido e que estadistas mais sensatos e providos de capacidade para verem longe teriam evitado e isto sem esquecer que há direitos portugueses sobre aqueles territórios e há toda uma população portuguesa cujos interesses naquelas terras têm que ser naturalmente defendidos. Mas Salazar é um velho tacanho que age como se estivéssemos no século dezasseis e o único direito que valesse fosse o da força bruta de cravar e defender um padrão a dizer que isto é nosso, como poderia ter a presença de espírito e a coragem de negociar com os nacionalistas uma transição de poderes que ao mesmo tempo que fosse passando para os naturais os mecanismos e as responsabilidades da organização da sociedade e das decisões políticas, desse espaço para quem quisesse recomeçar a vida num regresso à pátria ou fora dela, mas longe dos futuros novos países, o pudesse fazer, tal como a quem se quisesse integrar na realidade emergente e provavelmente será a maioria dos colonos brancos, igualmente dispor da oportunidade de o consumar. Só que esta canalha não vê que a história passou e eles estão do lado que ficou com as eras pretéritas e com a agravante de teimarem na posição de dar combate puro e simples a reivindicações a que não temos como negar a legitimidade, só irá produzir mais lágrimas e sofrimento e quantos como o César serão precisos para que se volte atrás? Tenho para mim que estamos perante um problema que é o de saber se haveremos ou não deixar que os nossos filhos sirvam de carne para canhão, logo agora que, entre eles e elas, são vários os que já trabalham connosco e outros tantos, aqueles que tendo prosseguido os estudos, apenas adiaram a data em que serão chamados para esse jogo medonho de brincar com a vida e a morte. E como é bom vê-los cheios de energia e entusiasmo, com à vontade dando opiniões aos mais velhos e propondo melhorismos que estes não alcançaram e continuam sem alcançar. Deve ter sido por isso que o filho do Quico, o Luís Carlos, quis casar antecipadamente com a Rosarinho, uma moça da Vila, filha do notário e, sem se fazerem esperar, trataram de dar o primeiro netinho daqueles que eram jovens, como eles o são, quando aqui chegámos. É a morte e a vida, o sofrimento e a alegria, a tristeza e a felicidade de que se faz, afinal, esta vida. Contudo, revolta vermos enterrar prematuramente pedaços de futuro e ainda mais quando a dor se emudece na impossibilidade de não calarmos a raiva e a vontade que temos de gritar bem alto que esta guerra a lado nenhum levará, a não ser à tristeza e ao maior e mais intenso dos padecimentos, para todos, os de lá e os de cá, sem outro retorno que não sejam as lágrimas irreversíveis da saudade que os que partirem deixarão.
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