VICTORIA
BRITTAIN
Nesta demanda de livros
cujo tema central é África, com predominância de Angola, não devemos, na minha
opinião, cingir-nos apenas aos autores angolanos ou lusófonos. Podemos (devemos)
manter o espírito aberto a todas as opiniões, estilos e formas de escrever. O que
verdadeiramente nos (me) interessa nestas abordagens é África, Angola. Vem este
pequeno preâmbulo para trazer a esta partilha uma obra muito interessante cuja
autora é uma jornalista ao serviço do “The Guardian”, respeitável jornal
britânico especializado em questões africanas e do terceiro mundo.
O livro intitula-se
“MORTE DA DIGNIDADE – A GUERRA CIVIL EM ANGOLA” com prefácio do escritor
angolano Pepetela. Foi editado pelas “Publicações D. Quixote” em 1998.
Sobre a
jornalista/escritora e sobre o seu trabalho Pepetela, prefaciando, diz o
seguinte: “Victoria Brittain, durante as numerosas
vezes que esteve em trabalho de reportagem, visitou a maior parte de Angola,
falando com pessoas de todos os extractos de população, não se contentando com
entrevistar meia dúzia de responsáveis dos vários lados em acção, como muitos
fazem. Foi procurar o povo humilde e trabalhador, o que nunca é achado para
nada, foi ouvir os relatos confrangedores dos deslocados de guerra, gravou os
murmúrios dos mutilados, por minas ou bombas, procurou os órfãos, foi saber dos
doentes e feridos nos hospitais. Teve assim a percepção da maneira como as
pessoas iam sofrendo e perdendo a esperança, frustradas constantemente todas as
ilusões, sabotados inexoravelmente todos os planos. E aponta corajosamente o
dedo aos culpados.”
Durante a leitura deste
livro torna-se óbvio que a autora beneficiou de uma liberdade de movimentos não
acessível a todos. Mas a apreciação do conteúdo político vou deixá-la a quem o
ler. Transcrevo apenas um pequeno parágrafo sobre Malanje, a cidade que fiz
minha e que me adoptou. Cá vai:
“(…) Em 1984 a cidade
de Malanje tentava “segurar as pontas” contra l’Afrique profonde. Era ainda mais fria que o Huambo e perdida
na neblina e na chuva. As ruas cheias de buracos, os edifícios destruídos e as
lojas fechadas contavam a mesma história de uma comunidade sob cerco virtual.
Mas lá não havia desespero. Esta era uma cidade que lutava numa guerra que
entendia claramente, como desencadeada pelo imperialismo. Nas paredes da rua principal, enormes murais
do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, de Fidel Castro e de Che
Guevara desafiavam os sul-africanos, a UNITA e os seus apoiantes dos Estados
Unidos. Na praça principal, árvores cor de fogo faziam sombra sobre o monumento
aos mortos de guerra, inteiramente construído por velhas espingardas AK-47 e
munições gastas, que prestava homenagem aos soldados cubanos que aí tinham dado
as suas vidas. Tal como no Huambo, a defesa da cidade era garantida por uma
guarnição cubana, e havia ainda na província um campo clandestino de
guerrilheiros sul-africanos do Congresso Nacional Africano (ANC).
Ficámos no palácio do
Governador, um castelo em ruínas devido à falta de manutenção, mas com belas
salas compridas cheias de sofás portugueses antigos e ornamentados, cadeiras de
braços e espelhos baços.
(…) No último dia,
quando ia para o encontro de encerramento com o Governador e o Partido, Lúcio
Lara levou-me a ver uma das maravilhas de Angola, as quedas de água de
Kalandula (no tempo colonial chamadas de Duque de Bragança). Fomos de carro ao
longo de estradas alcatroadas já gastas, através de florestas de grandes
árvores floridas e de campos de milho e de café. Quando saímos do carro para
descer a pé até Kalandula, as realidades por trás da escolta de doze soldados,
das ordens rigorosas de não andar fora do caminho devido ao perigo de minas, e
de começar a voltar para trás muito antes de escurecer, foram esquecidas por um
instante, diante da beleza daquelas quedas enormes e atroadoras, iridiscentes
ao sol e emolduradas por fetos gigantes de flores cor-de-rosa e brancas. Era
algo muito belo que passados poucos meses deixaria de poder ser visto durante
anos, à medida que a UNITA avançava para o interior da província, cortando as
estradas para Kalandula e outras estradas e zonas agrícolas. A bela Kalandula
desaparecia na África profunda.”
Ainda hoje, passados
mais de dez anos desde que a paz foi estabelecida, o acesso às belíssimas
quedas de água de Kalandula continua a ser difícil. São (ainda) reflexos de uma
guerra que marcou profundamente todo o quotidiano de um povo.
Mas agora venham comigo até Malanje e às quedas de Kalandula. Longe? Não.
Estão mesmo aqui ao lado, à distância de um clic.
Tomás Lima Coelho
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