A evolução na continuidade, trata-se de uma daquelas ideias que, depois de esmiuçadas, querem dizer absolutamente nada. O que pode ser isso de evoluir na continuidade? Se é a continuidade que prevalece como poderá haver evolução quando esta implica necessariamente a transformação? Sinceramente parece-me uma proposição que enferma de uma contradição entre as partes que a compõem. Por outras palavras, por mais atraente que enquanto frase e slogan se apresente, não é por isso que, por ventura, possa ter algum significado que de facto até nem tem. No entanto foi essa a ideia chave com que o Professor Marcelo Caetano se apresentou à nação como o sucessor designado de Oliveira Salazar e, portanto, o homem para chefiar as matérias da governação e, por via da mesma, os destinos de Portugal. Mau começo, digo eu que vindo de um antigo Reitor de uma Universidade como é a de Lisboa, deixa no ar a inquietação sobre se o homem será capaz de entender e pôr em prática aquelas medidas que, nos tempos que correm e na situação em que o país se encontra, com uma guerra em três frentes sem qualquer fim à vista e que consome importantes recursos que seriam úteis para ultrapassar a miséria que as cheias de Outubro do ano passado, ao redor da capital, deixaram bem à vista, seriam as iniciativas mais convenientes e adequadas para melhorar as condições de vida do povo, necessidade bem patente na emigração que nesta década tem atingido volumes e valores nunca anteriormente vistos e é bem sabido que esse fenómeno tem sido mais ou menos uma constante ao longo da nossa história. Ora quem começa com palavras ocas virá a ser capaz de desempenhar acções razoáveis? Logo aqui começa uma dúvida que, para meu gosto, não é muito difícil de resolver. O assunto é que é demasiado sério para se tratar de uma mera questão de gosto ou de interpretação, pois é fácil de perceber que, em contraposição do que escrevi, logo se poderá dizer que o alto dirigente quis sintetizar numa expressão a trave mestra do que se propõem, evoluir, isto é, desenvolver o país, mas sem sair dos limites e convicções do actual regime. Seria então caso para contra-argumentar que se o pensamento tivesse saído de uma banal converseta nenhum reparo mereceria pelo anódino de que enferma, mas saiu da cabecinha do Presidente do Conselho, aquele que nos governa, e nessa dimensão não pode passar ao lado o facto de, mesmo nesta explicação aparentemente mais abonatória para a coerência dos enunciados, não ser por esta que aquela deixa de encerrar a tal contradição insanável no seu interior e, em conformidade, eliminar o erro de palmatória em que consiste. A verdade é que continuamos sem perceber como é que se poderá evoluir sem transformar o que, na prática, implica que tentemos compreender como poderemos desenvolver a sociedade portuguesa sem acabar com este regime ou, por outras palavras, como é que o poderemos alcançar continuando a PIDE com a força que tem, a Censura com a tutela que mantém e os mais básicos direitos das pessoas, como o de criticar as políticas escolhidas e poder escolher outras, ou a mais prosaica possibilidade de fazer greve por um salário melhor, continuando esses direitos e outros a serem negados aos portugueses? Sinceramente não vejo que essa ideia peregrina da evolução na continuidade possa ter outro entendimento que não seja que tudo permanecerá como dantes no velho castelo de Abrantes. Saiu Salazar, entrou Caetano, uma espécie de “Le Roi est mort. Vivre Le Roi!” e tudo o mais continuará como até aqui. Seja lá como for e por mais fantástica que me possa parecer, há uma onda de euforia e de esperança quanto à eventualidade de o homem abrir o regime e aceitar o papel das oposições no jogo das decisões políticas. Aqui, entre nós, nem é tanto assim, pois só o Gustavo e alguns dos mais novos ainda lhe concedem o benefício da dúvida, mas a avaliar pelas conversas veladas que vamos tendo por aí, sobretudo pelo que se vai lendo nas entrelinhas da imprensa, são muitos os que não só se colocam nessa posição de esperar para ver antes de rejeitar, como não serão em menor número aqueles que, indo mais longe, acreditam que o Professor representa o fim do salazarismo e com isso é alguém que poderá interpretar as mudanças necessárias para que venhamos a ter um sistema político igual ao dos países mais ricos da Europa e, entre estes, em abono do optimismo, já ouvi até lembrar que nas greves dos estudantes da Universidade de Lisboa, em sessenta e um ou sessenta e dois, se não estou em erro, ele que então era o Digníssimo Reitor, tomou o partido pelos alunos chegando a proibir a polícia política e a GNR de entrarem nas instalações universitárias. Quanto a isto, muito simplesmente me pergunto que outra coisa poderia ele ter feito. Mas cá para mim estão todos redondamente enganados. Marcelo Caetano não só sempre foi um homem do regime, como sempre o foi não por qualquer oportunismo daqueles que tão vulgarmente se encontram por aí, fala por ele a competência e a sabedoria que denotou ao longo da sua carreira de docente universitário e todo o trabalho académico e não só que tem elaborado em torno do direito e assim se lhe devem reconhecer as qualidades de quem teve o mérito e, repito-o, de modo algum o sentido oportunista de procurar subir na vida a qualquer preço mas, precisamente por isso, sempre aderiu e apoiou a situação por profunda convicção ideológica. De Chefe da Mocidade Portuguesa a Presidente da Câmara Corporativa, ele passou justamente pelos cargos em que essa mesma fidelidade seria decisiva e quanto àquilo que se diz das suas incompatibilizações com o tirano, pessoalmente diria que isso terá decorrido mais de intrigas de outros que nele viam e sabiam das qualidades e brilho para, um dia, vir a suceder ao ditador, como acabou por acontecer. Contudo, tenho para mim que em todo o seu pensamento ele é um fervoroso adepto das sociedades rigidamente estruturadas e hierarquizadas de que afinal é um dos maiores arautos e melhores teóricos do corporativismo que em tais pressupostos se fundamenta. É, portanto, uma personalidade que por idiossincrasia não acredita na democracia e muito menos nas formas democráticas de organização política e, tendo isso em apreço, espanta-me como é que se pode esperar dele que promova nada mais nada menos que essa tal abertura democrática. Quer-me parecer que anda por aí muito boa gente a confundir ou a querer confundir os desejos com uma análise dos factos. Vamos ver, como diz o cego. No que me diz respeito, não tenho a mais leve esperança e até que caia de podre e já me enganei ao esperar que esta guerra que enfrentamos o provocasse, só por putrefacção este regime cairá a menos que os portugueses façam qualquer coisa por isso o que também não se me assemelha que esteja no horizonte próximo. E os mais inequívocos sinais do que acabo de sustentar são, por um lado, a inflexibilidade com que abordou o problema africano no que não deu a mais ténue das indicações de pretender sequer procurar uma solução política para o conflito e, por outro lado, o facto de não ter acabado desde logo com as prisões por motivos políticos e de opinião e simultaneamente abolido a censura, ainda que aqui possamos estar a assistir a um certo alívio no controle exercido sobre a imprensa, em geral, e o que as rádios e a televisão vão dizendo e transmitindo. De qualquer maneira, com o espectro da polícia política permanecendo sobre a vida de cada um, a auto-censura, a maior capação que as ditaduras conseguem impor nos espíritos daqueles sobre quem se abatem, essa permanece e não me parece mesmo nada que o Professor Marcelo Caetano tenha a menor intenção e muito menos a vontade de contribuir para que isso se altere. É isto, exactamente, o que quer dizer a evolução na continuidade; por muitos retoques que dêem por aqui e por ali, tudo continuará como no tempo de Salazar.
Até por uma imagem de graça, bem vistas as coisas, o tirano nunca chegou a ser deposto, caiu, muito simplesmente, da cadeira.