terça-feira, 20 de novembro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



A guerra acabou, embora tenha deixado um rasto de morte e de destruição atroz. Os jornais e a rádio dão conta de uma Alemanha literalmente virada do avesso, com as cidades completamente arrasadas e as populações em bolandas, sem um mínimo de condições de abrigo e sobrevivência mas, por toda a parte onde os exércitos passaram e se digladiaram, o resultado repete-se e não será ousado dizer que, em termos de condições de vida, vastas áreas da Europa quase terão regressado à idade da pedra. Na Ásia ainda se combate e tudo indica que o Império Nipónico se prepara para resistir até ao último homem e também aí, as ruínas e o caos são o saldo dos conflitos. Seja como for, neste lado do mundo os canhões deixaram de se ouvir e de impor a lógica da sua vontade e agora os homens podem fazer contas à vida e lançar as mãos à obra de reconstrução que obrigatoriamente terá que se seguir. De Londres a Moscovo houve festa e as multidões saíram às ruas em extraordinárias manifestações de regozijo, com homens, mulheres e crianças beijando-se e abraçando-se, num verdadeiro baile de contentamento por finalmente se verem livres das horas em que o amanhã, antes de tudo, transportava a incerteza da dor e da perda, quando não a eminência de se revelar como o momento final. Assim, a esperança ganhou direitos de cidade e depois da terra ter sido revolvida pela acção dos bombardeamentos e de milhões e milhões de pessoas terem sucumbido nos escombros das suas casas indefesas, os discursos são de confiança e de afirmação mais do que o desejo, da vontade de tudo reconstruir o mais rapidamente possível. Apesar de partilhar o pessimismo de Schoppenhauer quanto à natureza dos homens, compreendo não ser possível viver sem esperança e por isso percebo o optimismo subjacente àqueles que apelam à união de esforços na demanda da normalidade perdida, contudo, perante um nível catastrófico tão avassalador, custa-me acreditar que seja possível recuperar os patamares civilizacionais atingidos antes que se sucedam muitas gerações e certamente que o mundo anterior às hostilidades não voltará a ser o mesmo. Se virá a ser melhor não sei, mas não vejo como possa essa ordem de ontem regressar e os impérios europeus readquirirem a importância que outrora tiveram. As forças americanas que determinaram o pendor da balança para o lado dos Aliados e a economia de um país que não sofreu a mais leve beliscadura no seu território, desviaram definitivamente o pêndulo do poder e das decisões para aquele lado do Atlântico. À minha volta não ouço outra coisa que não seja a crença - não sei que outro nome lhe possa chamar - num mundo melhor, eu é que não subscrevo e ainda que não seja capaz de me explicar a esse respeito, temo pelo que os dias vindouros nos possam trazer. Por ora, por muitas que sejam as lágrimas de alegria, o presente permanece estatelado no pântano que a loucura legou. Da mesma forma não fui e não sou capaz de estar do lado dos companheiros que se apresentam convencidos que este nosso regime caia ou, pelo menos, se abra aos novos tempos democráticos que todos julgam adivinhar. É óbvio que seria bom se tal acontecesse e não tenho a menor dúvida em admitir que seria a primeira pessoa a ficar satisfeita com o meu próprio erro de avaliação mas lá está, por muito que intelectualmente me esforce nesse sentido, cheguei à conclusão que, nestas coisas, o pessimismo deve ser o meu estado natural e, por outro lado, decorreram tantos anos sobre a dita revolução nacional e, ao invés do que seria de esperar, o Estado Novo que se lhe seguiu tem vindo a endurecer-se cada vez mais que eu não consigo estar confiante quanto a uma alteração tão radical, afinal, só porque houve uma modificação das condições externas e mesmo neste âmbito, não podemos omitir o factor fundamental que é a necessidade dos países aliados se concentrarem nas respectivas recuperações e tenho sérias dúvidas se isso lhes deixará espaço para se preocuparem com alguém que até nem sofreu directamente os horrores do flagelo. E a melhor prova disto que digo reside na recusa que praticamente todos colocaram em face da proposta do Quico para nos deslocarmos à Vila em comunhão com as demonstrações de agrado pelo fim da guerra, à mistura com os votos esperançosos para as mudanças políticas que todos desejam. Ora aí está, estamos a jogar à defesa, como sensatamente o Gustavo e o José Pedro fizeram questão de apontar, isto por todos sabermos que a polícia política está de olhos postos em nós. Salazar é um ditador convicto e não me parece muito interessado em abdicar do poder e a avaliar pela maneira como as forças da ordem reagiram aos vivas aos aliados e à liberdade que se seguiram ao anúncio da rendição total e incondicional das tropas alemãs, coloco as maiores reticências à possibilidade de o regime evoluir. Se ainda aqui ao lado, os nossos vizinhos não estivessem subjugados por uma tirania implacável que fuzilou aos milhares aqueles que combateram pela República e, em muitos casos, simplesmente estiveram, do seu lado… Mas se ali o caudilho está de pedra e cal, dificilmente aqui poderá alguém vir em nosso socorro e as nossas forças armadas, apesar das revoltas e tentativas de golpe que houveram, estão demasiadamente comprometidas com o poder para o quererem derrubar. Olhando a oposição dispersa e ineficaz que temos e tendo em conta que os comunistas, por muito abnegados que se mostrem, não vão além de uma minoria sem grande margem de manobra e influência, nada resta para além dos homens da situação e o povo que sofre e se revolta, rápida e facilmente é recolocado nos eixos com o simples argumento da coronhada. O paizinho que nos visitou no último fim-de-semana, contou-nos o triste episódio que se passou na pequena terriola de Alhos Vedros, onde a população foi varrida a tiro, sublinho, a tiro e cacetada na sequência de um ajuntamento na praça principal em que as vozes, enfeitadas por bandeiras negras e vermelhas, se limitaram a clamar por pão e democracia. Pelo que consta não houveram mortes a lamentar, mas os feridos contam-se às mãos cheias e as prisões rivalizam-lhes o número. Para completar o desastre, o povoado encontra-se ocupado pelos militares e sob recolher obrigatório, no que é justo lamentar ao triste ponto a que chegámos em que aqueles que têm por missão defender-nos dos inimigos externos, são utilizados para reprimir o próprio povo a que pertencem. O meu querido pai chamou mesmo a atenção para o cuidado que devemos guardar até nas cartas que escrevemos pois, na sua opinião de homem experiente, a tendência que se desenha será para um drástico aumento da repressão, dado não haver outro caminho para que tudo possa ficar na mesma.
Estranha e perturbante é esta nossa felicidade, o modo sinuoso como esta guerra tão cruel acabou por confluir para o bem estar em que aquela se alicerça, ao permitir-nos o bom sucesso das nossas produções e, em curtos quatro anos, termos alcançado tudo aquilo que já conseguimos pôr de pé e como a partir daqui, ainda será ela que estará na base das perspectivas que se vislumbram para aumentarmos as nossas capacidades produtivas e com isso avolumarmos os nossos negócios e, seguramente, os rendimentos também. Mas quase não deixa de ser uma verdadeira excentricidade esta paz em que existimos e estamos a criar uma prole que já ultrapassa a dezena e, com a honrosa excepção de mim e da Éster, já se estende a todos os restantes casais da comunidade, se não contarmos com o senhor Abel e a dona Noémia que já aqui chegaram pais e, por motivos de idades, não pretendem dar um irmão à sua rica filha. O mundo sufocado pela tragédia e nós aqui cheios de planos da esperança de transmitirmos um legado de justiça aos descendentes que tratamos com tanto carinho e o máximo dos cuidados.
Amanhã vou ao médico, em Lisboa e o Manuel vai comigo. Vamos saber se está tudo bem comigo e com o bebé que vem aí. Será que virei a ser uma boa mãe?

5 comentários:

Unknown disse...

Parecia que era hoje... é cada vez mais difícil acreditar que a esperança ganhe direitos de cidade.
Foi um prazer ler esta crónica. Obrigada.
Teresa

Luís F. de A. Gomes disse...

De nada, muito embora isso me leve a convidá-la a ler as que estão para trás que, afinal, narram aquilo a que esta dá continuidade, as vicissitudes do Vale da Esperança, vistas por alguém que lá viveu desde a primeira hora e desde então contribuiu para isso... Que a esperança jamais perca esses direitos dentro do peito de cada um de nós.
Poderíamos conceber um mundo e a vida sem ela?

Luís

Unknown disse...

Não. De facto.
E sim. Vou ler as outras.
Teresa

Anónimo disse...

Thank you

Luís

Luís F. de A. Gomes disse...

Thnak you

Luís

PS

Deve ignorar o agradecimento anterior que saíu com a morada da minha filha mais velha que é a utilisadora deste pc e, por isso, a morada do blogger estava em nome dela. Enfim... Coisas de nabos e de jovens pouco cuidadosas, mas mais de nabos que a jovem dá como adquirido o facto de o pc ser só dela, muito embora hajam ocasiões, como esta, em que o pai ptrecisa mesmo de usar as ferramentas alheias.

Seja como for, este agradecimento é que vale - ainda que seja igual ao anterior.

Luís