Era janeiro, na roça o milho já estava granado. Palha verde, grão amarelo-claro, macio, pronto para ser colhido para o fim a que se destinava: as quitandas que os mineiros tanto apreciavam.
Como todo o ano
ocorria, na época das primícias, o senhor Jovelino trazia da fazenda dois a
três sacos de milho verde que deixava na cozinha de fora da casa, para ser
preparado na confecção das iguarias. Naquela ocasião, D. Maria, a dona da casa,
convidava as vizinhas e comadres para o mutirão (tradição da região,
importada), para ajudarem no trabalho. Era uma verdadeira operação
culinária. Um grupo descascava o milho, guardando as folhas mais jeitosas para
fazer o copo que receberia a massa de milho, previamente preparada. Outro grupo
ralava-o em grandes raladores artesanais, e um terceiro grupo temperava a massa
com óleo fervente, açúcar ou sal, se a pamonha fosse doce ou salgada. Depois de
formado o copo colocavam a pasta e um pedaço de queijo de Minas semicurado na
pamonha doce, ou linguiça frita, esfarelada, na salgada. Nos tachos de água
fervente colocavam as pamonhas devidamente amarradas com tiras de folhas de
milho, com todo o cuidado, e deixavam-nas cozer por meia-hora, até a massa
endurecer. Depois era só comer, retirando a casca de palha. Mas não eram apenas
as pamonhas as iguarias aguardadas. As senhoras e suas mucamas faziam bolos,
mingaus, biscoitinhos, polentas, curaus, usando a imaginação e as especiarias
para valorizar e diversificar o paladar das quitandas. Era uma verdadeira
festa gastronômica em honra ao milho, cereal tão apreciado e importante na
alimentação dos animais e da gente do interior brasileiro.
A
casa, seguindo arquitetura antiga do Brasil Colônia, se debruçava sobre a
calçada, com uma entrada pelo alpendre e outra pelo portão lateral, que servia
de acesso aos fundos da residência, onde ficavam um banheiro rústico, um
quintal repleto de couves, ervas medicinais e árvores frutíferas, e uma
cozinha ao ar livre, coberta, mantida por duas paredes vazadas e duas fechadas,
onde prateleiras exibiam panelas areadas, reluzentes, vaidade da dona da casa.
No centro do aposento, uma grande mesa e cadeiras. Nas laterais, bancada
com pias, um fogão à lenha e uma despensa onde guardavam os mantimentos.
Era a peça da casa mais importante, ponto nevrálgico da moradia, onde todos se
reuniam e trabalhavam, enquanto punham a prosa e as novidades em dia.
Após a escola, a
garotada esperava com gula a hora do lanche da tarde, quando iria provar as
quitandas. Um olho nas pamonhas e outro nas mucamas que, com trejeitos,
dengosas e insinuantes tiravam o sossego dos patrões e atiçavam o instinto
púbere dos rapazes. Constança, mulher feita, neta de
escrava, cria da casa, era de tirar o sono da rapaziada.
Mulata bonita, cheia de curvas e despachada, sabia o efeito que
despertava e se comprazia em provocá-los para depois ridicularizá-los, às
gargalhadas. Exímia nas tarefas domésticas era a mão direita de D. Maria, que
lhe transferia funções e poder. O sonho erótico da garotada era ver aquele
monumento de mulher como nasceu, pelada! E naquele dia pensaram que
chegara a ocasião tão esperada.
Final de
tarde, distribuídas as quitandas pelas participantes do mutirão, após o lauto
lanche regado a café coado na hora, arrumada a cozinha, viram Constança, com a
toalha no braço, sabonete e roupa limpa, ir para o banheiro que ficava no
quintal, junto ao muro da vizinha. Construção rústica, velha e fechada, coberta
com telhas de cerâmica grosseira, mal colocadas, era um convite exploratório
para os moleques traquinas. Rápidos, sem dar na vista, subiram pelo muro da
vizinha e, se arrastando sobre as telhas, disputando um lugar com melhor
vista, logo ouviram um forte estalido. Não tiveram tempo de ver nada. O
telhado fragilizado, arruinado pelo caruncho, não suportou o peso
da molecada. Desmoronou com um grande estrondo. Constança percebendo a
movimentação saiu antes da queda, pela porta, ilesa, ainda vestida.
Enquanto a rapazes, tontos e arranhados, se levantaram e se dispersaram
em meio à plateia feminina atônita. Para completar o desastre veio o
castigo para os dois filhos da casa, os que não escaparam, uma quente e
forte tunda. Os demais “caíram na braquiária”... perderam-se de
vista.
Constança não se
casou. Já tinha um lar para cuidar e mandar. Ficou velha servindo os
patrões ao até o fim de suas vidas. Agregada e tratada como membro da família
ajudou a criar os netos de D. Maria e do senhor Jovelino, filhos daqueles
rapazes traquinas. Na casa de um deles, ainda vive e sempre que tem
oportunidade conta essa história, do tempo em que era jovem e bonita.
Maria Eduarda
Fagundes
Uberaba, 07/11/12
2 comentários:
A leitura, quando dá, dá-nos bocadinhos de coisas. Boas ou más. A leitura deste texto foi para mim um bocadinho de coisa boa. Obrigada.
Teresa Bondoso
Gentil comentário o da Sra.Teresa. Que bom deixarmos um sentimento de prazer naquilo que escrevemos. Obrigada.
Um abraço
Eduarda
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