terça-feira, 27 de novembro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Há quanto tempo não me sentava para escrever estas palavras, há tanto que até esqueci o quanto era do meu agrado, apesar de todo o cansaço que sentia, estar aqui a esta secretária e dar início ao progressivo preenchimento das folhas em branco do caderno, no que passou a ser uma espécie de gozo do mistério de ver as letras paulatinamente substituírem as linhas ao ritmo do deslizar do aparo. Agora vejo como isso constituía um tónico maravilhoso para enfrentar as muitas atribulações do dia a dia fisicamente desgastante em que cheguei a fazer de tudo um pouco, ora carregando, ora manuseando isto e aquilo, dos solavancos dos tractores aos braços cavadores das sementeiras, sem folga para o arranjar da casa que tanto eu como o Manuel muito gostamos de trazer acolhedora e bonita e naturalmente sem trespasse de tudo o que reporta ao quotidiano da nossa própria sobrevivência. Dias árduos e intensos que pouco mais deixavam que o espaço para dois dedos de conversa e quando abriam uma fresta para a leitura, raramente se inibiam de pesar sobre as pálpebras e geralmente se transmutavam numa pequena vela que em curta vintena de minutos se consumia. E estes momentos, estes instantes em que me pouso nos reflexos que a luz faz com os vidros enquanto ordeno mentalmente uma frase ou rebusco um vocábulo, eram ou acabaram por se transformar na minha forma de evasão preferida e não demorou para que tenha dado conta do seu tremendo efeito relaxante. É certo que o bom desenrolar da vida do trabalho e os excelentes proveitos que dela vamos retirando, mesmo contabilizando as arrelias e desfeitas que sempre seriam de esperar e que na realidade aconteceram, evidentemente isso funcionou como uma mola de motivação para que na madrugada seguinte a uma jornada invulgarmente esforçada, nos erguêssemos de rosto alegre para tratar das capoeiras e da horta, no quintal e depois meter os pés a caminho do que estava destinado nos campos ou nos armazéns. Nesse aspecto, nunca pensei sentir um tão forte sentimento de orgulho por ver o fruto do nosso empenho e não duvido do contributo que isso terá dado para que o corpo se tenha habituado à fadiga sem o mínimo sinal de protesto, mas vistas agora as coisas pela distância de todos estes anos, era este o prazer que, fora dos carinhos do Manuel, maior impulso me provocava para passar pela dureza das horas quase sem dar por isso. Nos dias em que se começavam a formular ideias e dentro de mim começava a ganhar forma o rol daquilo que então sentia ter para dizer, havia uma euforia que surgia e à medida que me ia envolvendo parecia que me puxava para esta cadeira e mal a arrastava para que o pensamento pudesse escorrer para o papel, era como se entrasse numa bolha dentro da qual subia a um outro mundo subtraído aos ditames das leis físicas. E o mais engraçado é que foi exactamente essa crispação no interior do peito que hoje comecei a sentir depois do jantar e para aqui me empurrou através de um apelo incontornável. Mas não foi em vão que tantas vezes as árvores se derramaram e outras tantas os terrenos esverdesceram e permitiram que os pincéis das sementes os pintassem de manchas e tufos multi-coloridos. Muito foi aquilo que se fez no decurso destes anos e várias as mudanças que se verificaram. A começar por mim que fui mãe, por duas vezes, com um intervalo de três anos e agora partilho o encanto de tratar para que aqueles dois rapazinhos lindos que de alegrias e espanto enchem o meu coração, possam crescer felizes e com as melhores condições para que um dia possam vir a escolher o seu próprio caminho e sem omitir o acompanhamento para que venham a ser pessoas de bem. Pois foi justamente o encarar de uma tal responsabilidade que me impediu de continuar a usufruir destes doces encontros que só espero poder a partir daqui reatar. É curioso como por vezes concordamos com uma ideia sequer sem nos darmos conta de não termos plena consciência do seu alcance, antes pela intuição de nos parecer bem, não sendo no entanto capazes de compreender muitos dos aspectos da mesma e muito menos extrairmos daí os ganhos que, em potência, possam transportar dentro de si. É um pouco o que me sucedeu com a concordância para com a medida que adoptámos desde o nascimento do Adão que hoje está um rapagão, aos onze anos, alto e robusto e que daqui a nada ultrapassará os pais em tamanho, saudável que é e como cresce e que permite às mães ficar em casa, junto da cria adorada, até que esta cumpra o primeiro aniversário. Tanto quanto me recordo, esta foi daquelas decisões consensuais a que nem o Aranda e o primo do Zé que já abalaram zangados por não verem prevalecer a vontade de remunerar uns mais que outros, se opuseram. No que pessoalmente me diz respeito, só depois de estar a viver a experiência de criar um filho fui capaz de compreender como é importante para uma criança a presença dos pais enquanto se desenvolvem as primeiras faculdades no seu contacto e compreensão do mundo envolvente. É claro que estou a pensar em termos de pais ternurentos, isto é, pais suficientemente atentos e disponíveis para as solicitações que amiúde os petizes nos apresentam, sem que por isso deixem de ser rigorosos no estabelecimento e cumprimento de regras sem as quais jamais se pode esperar obter pessoas de carácter e ao mesmo tempo capazes de encherem aqueles corpinhos pequeninos de carinho sem ultrapassar a linha a partir da qual o mimo estraga e em vez de pessoas determinadas produz pequenos tiranetes egoístas a que só por acaso se deixa de associar a falta da força de vontade. Aliás, é daqui que deriva a autoridade saudável que os pais devem ter sobre os filhos que de modo algum se confunde com o autoritarismo que acriticamente é aceite e está tão disseminado pela larguíssima maioria das famílias. No nosso caso, estou a falar de pais com conhecimentos e formação susceptíveis de permitir uma reflexão a este nível e que, em conformidade, entre si falam do que deve ser feito ou do que possa ter corrido mal. Bem sei que infelizmente essa é a condição de uma pequena minoria privilegiada a que foi dada a oportunidade de fazer estudos universitários. Mas agora vejo como é que não pode deixar de haver tanta gente má e infeliz por esse mundo, como é que tantas desgraças provocadas por ladrões e vigaristas e outros géneros de criminosos, começam por dizer respeito ao íntimo das pessoas propriamente ditas e como é que os primeiros anos de vida podem ser influentes e importantes nas definições dos caracteres e, dessa forma, funcionarem como bens preventivos ou, ao invés, como impulsionadores de comportamentos que se deixem prender nas malhas da maldade dolosa e sem constrangimento para com os outros. O Manuel é um pai extraordinário, gosto muito de o ver falar com os filhos, sempre calmo e com um sorriso alegre e cativante nos lábios, cheio de paciência para com as falhas e os erros deles e incansável na serenidade com que os corrige e os leva a corrigirem aqueles. Admiro-lhe imenso a tranquilidade com que os leva a fazer coisas que antes eles achavam difíceis ou como os consegue chamar para a sua paixão pela geologia e os convence a ajudarem-no nas suas demandas de rochas e fósseis e registo, ultimamente fotográfico, de certos acidentes morfológicos que lhe despertam a atenção. É tão incrível a felicidade que sinto quando os pequenitos correm para mim de braços abertos, empolgados pela vontade de me contarem os pormenores das expedições e como ajudaram o paizinho a encontrar isto ou aquilo. Como eu ri quando o mais novinho, num dia destes tirou do bolso das calças uma pequena pedrinha acastanhada e todo entusiasmado me disse ser aquilo sílex, com que os homens antigos faziam lanças para caçarem animais. Honestamente, agora só sou capaz de ter pena dos pais que, podendo, não dão conta do crescimento dos filhos. Mas por tudo isto compreendo agora a importância das consequências da decisão que tomámos quanto à permissão para que as mães suspendam o trabalho ao longo do primeiro ano de vida dos filhos. É que assim podemos estar presentes quando eles começam a dar os primeiros sinais do seu envolvimento com o mundo e desde a primeira hora incentivá-los a aprender bem e a ganharem auto-confiança naquilo que fazem. Daí resulta o auto-respeito e com ele a base da assimilação dos valores e das regras que nos conduzem ao respeito pelo próximo. A verdade é que nós temos dois rapazes tão diferentes um do outro, o mais velho todo metido com ele mesmo e mais dado a ficar nas suas brincadeiras aqui em casa ou na casa do seu grande amigo, o Jorge e o mais novo mais virado para corridas na rua e brincadeiras ao ar livre e, no entanto, ambos respeitosos para com os adultos e tanto um como o outro incapazes sequer de atirar um papel para o chão. E devo dizer que não foi esta a única surpresa da maternidade. Antes duvidava das outras mulheres que me diziam que eu não sabia o que perdia por ainda não ter tido filhos e sinceramente tinha muitas desconfianças quanto a isso do instinto maternal e lengalengas do género. Pois bem, agora digo que muito simplesmente não era capaz de imaginar o quanto é bom para a alma ver alguém fazer-se gente, ainda mais quando nos saiu do ventre e o quanto me inebria saber que vou contribuindo para isso e, pelos vistos e sem o mínimo de gabarolice, bem. É a melhor coisa do mundo e por isso estive tantos anos sem me sentar a esta secretária.
Mas amanhã conto voltar aqui.

2 comentários:

Unknown disse...

Também eu conheço essa “espécie de gozo do mistério de ver as letras (…) substituírem as linhas ao ritmo do deslizar”, neste caso, da caneta.
Eu, em mim, não o vivi. E, para que assim fosse, vi, muitas vezes, o corpo da minha mãe habituar-se “à fadiga sem o mínimo sinal de protesto” .
Subscrevo o valor dos “pais suficientemente atentos e disponíveis para as solicitações que amiúde os petizes nos apresentam, sem que por isso deixem de ser rigorosos no estabelecimento e cumprimento de regras sem as quais jamais se pode esperar obter pessoas de carácter e ao mesmo tempo capazes de encherem aqueles corpinhos pequeninos de carinho sem ultrapassar a linha a partir da qual o mimo estraga e em vez de pessoas determinadas produz pequenos tiranetes egoístas a que só por acaso se deixa de associar a falta da força de vontade.”
E gostei especialmente de ler o pedacinho do texto que dizia “ ajudaram o paizinho a encontrar isto ou aquilo”. O paizinho…
Obrigada.
Teresa Bondoso

Luís F. de A. Gomes disse...

É a cultura familiar do carinho aquilo a que, se assim o quisermos, uma vez transposta para o exterior desse círculo de relações, poderemos chamar de cultura da delicadeza, quanto a mim, uma das ferramentas da esperança, sempre ela, essa chama invisível que tem animado a humanidade na sua paciente caminhada, desde a noite dos tempos.
Muito haveria a dizer sobre isso, permito-me apenas uma nota aqui expressa ppela exposição de dúvidas. Qual a relevância da educação para aquela? Será que a mesma não terá um contributo a dar na aceleração da civilidade, aqui entendida justamente pela dignidade que se deve reconhecer ao outro com que lidamos? A verdade é que, apesar do que nos diz o senso comum e pretensas teorias ou olhares científicos e ainda a despeito de toda a maldade e atrocidades de que nos revelamos capazes para com o semelhante, vivemos hoje num mundo menos violento que em todo o tempo do nosso passado enquanto espécie. Não será esse um sinal de afinal não estamos condenados a extinguir-nos e muito menos a uma pena de Sísifo? Pois bem, não será essa cultura da delicadeza um dos mecanismos que poderemos utilizar precisamente para irmos diminuindo a violência e com ela as arbitrariedades dos nossos quotidianos de humanos?
E saber que tanta gente se revê no carinho dessa expressão, "paizinho", nada quererá isso dizer?

Entre quem escreve e quem lê - pode haver texto sem Leitor? - é ao primeiro que incumbe sempre agradece; ao segundo nem sempre. Curvo-me então por me agradecer e mais um pouco por ter lido as minhas palavrinhas.

Luís