terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Há algo de verdade naquela sabedoria antiga do Oriente que encara a vida segundo aquilo a que eu vou chamar de teoria do pêndulo, segundo a qual a vida se comporta como esse instrumento, ora pendendo para um lado para depois tomar a direcção e a demanda do pólo oposto, ora acabando por encontrar o equilíbrio entre eles e, com isso, o ponto e o rumo certo que a mesma deve seguir num determinado momento. Não é que isto tenha necessariamente por consequência aquilo que vou dizer, mas ressalta para mim que isso nos chama a atenção para o facto de em inúmeros casos e situações, nós podermos encontrar sempre um aspecto positivo, pelo menos um, em coisas que até nos podem ser dolorosas e difíceis de superar. Escusado será dizer que não me parece que isto implica única e obrigatoriamente a resignação perante as agruras, de modo algum, apenas nos desperta para um dos meios que temos para enfrentar o desespero, na medida em que nos permite compreender que na proporção exacta do nem tudo o que luz é ouro, também nem todas as tempestades apenas têm as borrascas maléficas que nos oprimem e visam – salvo seja o animismo que o verbo pressupõe – destruir. Se estivermos atentos e não nos deixarmos cegar pelas circunstâncias, o que admito não seja fácil de fazer, quase sempre seremos capazes de encontrar uma vertente, uma consequência, da qual possamos extrair algo benéfico para nós; mais não seja, está ao nosso alcance a aprendizagem com o erro ou os erros cometidos. Salva-se pois a conclusão que me indica ser uma pessoa de sorte por ao longo da minha existência ter assistido a mudanças sociais revolucionárias, antecipadas pelas respectivas alterações de paradigma que geralmente desembocam em novas formas de organização social e económica que é, justamente, o que estamos uma vez mais a viver em Portugal como consequência da nossa entrada na Comunidade Económica Europeia e, pelo conteúdo do discurso dominante, as perspectivas que isso abre e as exigências que acarreta. Eu tinha cinquenta e seis anos quando aconteceu o vinte e cinco de Abril e com essa idade assisti à queda de um mundo e ao surgimento de um outro que depois de toda a ebulição revolucionária que se seguiu adquiriu contornos e matizes socializantes que, por via das partidas e contra-partidas dos diversos actores que para isso concorreram, exibiu os aspectos dúbios que decorreram de em uma economia praticamente toda estatizada se pretender evoluir no âmbito das lógicas da iniciativa privada e das regras dos mercados. Se considerar que houve na verdade uma tentativa para impor um regime de moldes soviéticos entre nós, como a historiografia e os discursos políticos decorrentes da facção que venceu em Novembro de setenta e cinco e colocou um ponto final a esse mesmo movimento pretendem, então poderei dizer que fui criada num e para um mundo em que vivi a maior parte dos meus dias e ruiu, presenciei o avanço de outro que abortou e estou agora finalmente a testemunhar a implementação de um outro em que precisamente se apontam os mercados e a economia de mercado, como hoje em dia se diz, como o paradigma a que devemos aderir e a meta que importa almejar e o sistema de referência a partir do qual se impõe, para os mais impacientes e por isso mais apressados, urge, suster e organizar toda a sociedade e maneira de viver. O discurso corrente na sequência da euforia em torno da primeira maioria absoluta de um só partido desde que voltámos a ter eleições livres entre nós e, não sejamos hipócritas, em boa quantidade da massa em que essa avalanche se faz ouvir, na perspectiva e mira dos rios de dinheiro anunciados no contexto dos apoios comunitários ao desenvolvimento dos membros mais recentes da Comunidade Económica, o discurso comum que agora parece querer abafar todos os outros é exactamente esse, o que defende ser apenas possível desenvolver o país no domínio de uma economia de mercado em que a prioridade máxima deve, em conformidade, ser dada à privatização do aparelho produtivo e à abertura do sector financeiro à iniciativa privada. Para aqueles que defendem a repartição da riqueza que se produz, está na moda opor a ideia que todos poderemos enriquecer e o mais espantoso é como, independentemente de aquilatarmos do quanto isso possa ou não ter de sentido, a comunicação social cria uma bolha de ilusão que faz parecer que a larga maioria das pessoas acredita piamente nisso. Vamos a ver onde é que isto vai parar, mas seja onde for, o que me incomoda é que também entre nós, avaliando pelas vozes que se fazem ouvir, esta visão dá mostras de ter ganho adeptos, quer dizer, a onda chegou até nós e tudo aponta para que nos traga os inerentes efeitos de choque. Provavelmente, eu não voltaria a escrever nestes cadernos não fosse a gravidade do que se está exigindo por aqui. É verdade que nem tudo tem corrido da melhor maneira e, especialmente nos primeiros anos desta década, enfrentámos dificuldades no escoamento dos produtos no mercado interno que, por exemplo, nos levaram a reduzir pessoal em praticamente todas as actividades e, no caso daquilo que foi o empreendimento emblemático das mulheres, os produtos alimentares transformados e liofilizados, vimo-nos mesmo forçados a encerrar a linha produtiva e todo o circuito comercial daí derivado. Contudo, isso nada tem a ver com o que actualmente se pretende que é a separação das unidades e a venda das mesmas a quem queira assumir o compromisso de as manter segundo o figurino de um negócio particular; para tanto vai uma distância que no meu entendimento – deverei escrever modesto entendimento? – importaria que não percorrêssemos. Eu não me inquietaria se tudo se tratasse de um fenómeno restringido ao cenário de uma discussão teórica. Acontece que estamos num plano mais avançado e logo mais perigoso, pois a pressão que se faz sentir para que se dê esse passo tem sido de tal maneira potente e constante que, neste momento, já escutei análises quanto ao modo como proceder a tais privatizações se é que este termo tem aqui alguma validade. Aquilo que vejo é que há uma grande maioria de cabeças a pensar desse jeito e, por mais incrível que seja, dir-se-ia que aquela operação afinal se trata, não digo ainda um acto, digo, no entanto, de uma decisão consumada. Sinceramente, a menos que me façam ver claramente o contrário, estou convencida que este pessoal pura e simplesmente perdeu a cabeça e está a deixar-se enevoar para não escrever cegar, por uma miragem de fortuna com que a óptica mercantilista tanto em voga vai acenando. 
 Tenho receio que estejamos perante o toque de finados desta comunidade que nos consumiu os melhores anos das nossas vidas e, feitas bem as contas, tão enriquecedora foi para todos e, no que aos ângulos em apreço diz respeito, tão bons resultados gerou em sede de justiça social. Contava com uma velhice diferente, seguramente mais descansada do que as nuvens ameaçadoras deixam antever no horizonte.

Sem comentários: