terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Não consigo deixar de pensar que esta gente está completamente doida, embora sequer me passe pela cabeça pôr em causa a decisão tomada que, na devida consciência de cada um, resultou de uma vontade que se mostrou largamente maioritária. Mas até por isso, precisamente por estar perante uma onda avassaladora que em tão pouco tempo volveu a mente de tantas pessoas, tal como num livro de Bulgakov que li num dos meus retiros parisienses, até parece que um qualquer manto invisível de magia passou pelo mundo e alterou as consciências dos homens que se deixaram deslumbrar pelo brilho metálico que aquele teve por rasto diante dos olhos de todos. É que só pode ser por pura doidice que de repente se abandonou um caminho que era seguro e onde se colheram e naturalmente continuariam a colher bons frutos, pelos cantos de sereia de outros em que o que se avista são certezas postiças de um enriquecimento individual de promessa, quase se diria sem esforço e isso é nada mais que lirismo, de modo algum podendo confundir-se com um sonho de sonhadores como um dia nos chamaram, antes se reduzindo à simples ilusão de pensar que os desejos e a realidade são a mesma coisa, ainda que pouco tenhamos feito por isso. E a verdade é que a ninguém ocorre perguntar se no mundo que criámos não viemos a obter esse mesmo enriquecimento que agora se coloca no altar de todas as adorações? Isto para nem chegar a espantar-me por sequer haver quem pare para pensar, o mesmo é dizer para efectuar uma avaliação do que conseguimos, o balanço entre o que de bom alcançamos e redistribuímos e aquilo que tenha gerado maus resultados que em prejuízo de todos se firmaram. Como é que em juízo perfeito, em função de um novo paradigma – bem lá no fundo tão velho como o capitalismo – se pode pura e simplesmente apagar toda uma obra que tanto custou a pôr de pé e em que os mais pobres encontraram um caminho consistente para deixar de o ser e sobretudo para não legarem aos filhos nada mais que a pobreza com que os trouxeram ao mundo? Como é possível que ninguém dê valor a isto ou, para ser mais exacta, como é possível que haja alguém que não dê valor a isto, uma vez que o apreço já implica uma posição de princípio? Ora é aí que o sopro das sereias lança o pó da magia que tem envolvido os espíritos, agora todos parecem rendidos ao poder e, pasme-se, à bondade dos mercados e de tal maneira ou com um tal ímpeto que, ao defender-se que estes se regulam entre si, se está a sacralizá-los como se uma leitura de Dyckens não fosse suficiente para sabermos que não é assim que, livres de amarras, completamente livres do controlo por parte dos estados e das leis e das barreiras que o primado da justiça social lhes possam colocar, aqueles tendem a gerar riqueza, é certo, podem até gerar muita riqueza e assim tem sido, mas não a repartem e aquilo que se observou foi que aquela sempre foi acumulada pelos mesmos em número reduzido, traduzindo-se em cada vez mais miséria para os que restam que em larga maioria vão empobrecendo. Contudo é este o sinal dos tempos e aqueles que fundaram esta comunidade são agora uma pequena minoria entre aqueles que decidem e não podem contar com a força dos outros companheiros que em grande número já deixaram de estar entre nós. Foi com enorme desgosto que o José Pedro viu as produções industriais de azeite, arroz e tomate serem divididas, bem como as fábricas de cortiça e a de produção de pano, sequer escapando as oficinas e o próprio posto médico que assim passou a clínica privada e foi com justiça que fez todos os seus herdeiros pessoais, dois dos quais, um dos seus filhos e um neto, envolvidos nesta mudança de rumo, assinar um documento em que se comprometeram a respeitar o usufruto de todas as terras pela cooperativa enquanto esta existir. Para já, há uns quantos que ufanam de contentes e quem os ouve expressar esse optimismo, tem a nítida sensação de escutar um conto de fadas. Vamos a ver ao que irá conduzir esta ambição desmedida que se esconde por entre as loas dos festejos.

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