domingo, 5 de janeiro de 2014

 
 
 
 
OFERTA DE UM PEREGRINO QUE PASSOU POR MIM
 
Sentado sob a árvore e absorto nos meus pensamentos, fui resgatado à meditação pela voz irritada da funcionária municipal de limpeza, «chiça! que a merda da árvore parece que caga folhas».
Procurando encontrar a razão para a irritação da personagem, olhei na direcção da voz e percebi. Era Inverno, época em que as árvores de folha caduca perdem a folhagem, e a funcionária de limpeza pública tinha feito dois montes com as folhas caídas para as pôr no carro do lixo, quando uma nova rajada de vento fez cair da árvore mais uma enorme quantidade de folhas que pejaram o chão.
Aquela fora uma das causas apontadas pela edilidade, a par de que as raízes danificariam os esgotos, para, há algum tempo atrás, pretender abater a árvore, só não o tendo feito devido à mobilização de muitos moradores (entre os quais eu me incluí) que se opuseram a tal propósito, tendo mesmo organizado um abaixo-assinado em defesa da árvore.
Fiquei a observar as diligências da funcionária. Estava frio e de vez em quando sopravam umas rajadas de vento.
Estava nisto, quando vejo aproximar-se um homem que, num relance, tomei por um pedinte.
Aproximou-se e apesar do seu aspecto descuidado, percebi que não era pedinte nenhum. Era até alguém com qualquer coisa de especial.
As roupas eram bastante usadas e os sapatos velhos e gastos. O cabelo e a barba compridos, empastados, justificavam limpeza urgente e a intervenção de um barbeiro mas, algo no seu olhar indicava que não se tratava de nenhum “desgraçado”. O seu olhar era determinado mas polido e brilhante.
Cumprimentou-me, «bom-dia, pode dar-me um cigarro?», eu correspondi, «bom-dia como está, concerteza».
A conversa começou assim e discorreu a partir dali.
Perguntou-me porque observava com tanta atenção o trabalho da mulher e eu contei-lhe a história da árvore e ele perguntou, «gosta então de árvores?», «gosto. Muito.», respondi. Depois de dar umas fumaças no cigarro esfarelou-o entre os dedos e atirou-o fora. Olhei para ele interrogativamente. Apressou-se a responder «ah, eu não fumo pedi--lhe o cigarro só para meter conversa». O meu olhar intensificou-se e ele percebeu que a explicação era insuficiente. «Ao dirigir-me para aqui vi-o aí sentado, sozinho, ao frio e com este vento… achei estranho mas, talvez por isso mesmo, pareceu-me uma pessoa interessante e como ando à procura de situações interessantes dirigi-me a si para conversar um pouco. Espero que não leve a mal». Perguntei, «anda então à procura de situações interessantes, mas isso é alguma profissão?» Riu-se, «a profissão agora é desempregado. Era professor de filosofia, na situação de contratado, com os sucessivos cortes e remodelações fiquei nesta situação. Vivo com os meus pais mas a situação começou a ficar insustentável. Sempre a darem-me sugestões, para que emigrasse ou tentasse outra coisa, tanto esforço para nada, blá-blá-blá…, enfim saturei-me e decidi vir dar uma volta à procura das tais coisas interessantes, pensar na vida e no mundo e tentar encontrar uma saída», falou encolhendo os ombros. «Quer tomar alguma coisa?», que «só se for uma garrafa de água.»
Convidei-o a entrar no café do largo, e pedi duas garrafas de água.
«Então e donde é que é, de onde é que vem?», «sou de Vila Real (de Trás-os-Montes).  Decidi vir para sul e primeiro apanhei boleia de um camionista até Leiria, depois um outro trouxe-me até S. João da Talha, passei uns tempos em Lisboa e decidi continuar para sul. Apanhei o barco para o Barreiro e, durante a viagem, ouvi um grupo de jovens a falar desta terra e de uma Feira Medieval que iria decorrer, achei interessante e perguntei se essa terra era longe. Responderam que não e que se quisesse até me davam boleia, aceitei e cá estou eu. Sei que Feira começa hoje. Passei pelo recinto e parece-me ser uma coisa com alguma dimensão. E parece interessante, estou no sítio certo.»
O personagem era jovem – deveria andar na casa dos trinta e poucos – e confesso que gerava alguma empatia.
«Como é que se chama?», «Miguel, Miguel Torgal, acho que foi uma forma de o meu pai prestar homenagem ao poeta e escritor Miguel Torga de que era admirador, e você?», «eu sou José Paulo, e então, tem encontrado muitas coisas interessantes nesta sua aventura?», tirou a mochila que trazia a tiracolo, abriu-a e retirou de lá um livro. Percebi tratar-se de “A Educação de Portugal” de Agostinho da Silva, facto que me fez aumentar o interesse pelo personagem. «Grande homem», comentei. «Sem dúvida. Homem fascinante e cheio de sabedoria. Põe-nos a pensar, faz-nos pensar. É uma boa companhia.» Sorri e informei que infelizmente estava com pressa e tinha de me ir embora, talvez nos encontrássemos na Feira Medieval. «Tudo bem, se nos encontrarmos talvez possamos continuar a conversa mas, já agora e respondendo à sua pergunta, tenho deambulado, observado, lido e reflectido sobre vários assuntos e gostava de lhe oferecer uma coisa.» Retirou da mochila um papel dobrado em quatro e estendeu-mo, «está aí a súmula do que retive do que li, ouvi, vivi e observei desde que iniciei esta aventura. Veja e, se depois nos voltarmos a encontrar, talvez possamos falar sobre isso.» Agradeci e, já de saída, «foi um prazer, talvez nos encontremos mais logo», meti o papel no bolso e acelerei direito a casa.
Confesso que estava bastante curioso por desvendar o que o papel continha mas decidi que só o faria depois de despachar o que tinha para fazer (tratar do jantar), pois queria ver o que fosse com calma. Depois de tratar do que tinha de ser tratado, sentei-me no sofá e desdobrei o papel. Tinha escrito, numa letra equilibrada e elegante, aquilo que me pareceu um conjunto de princípios filosófico-orientadores. Eis o que dizia:
 
MANIFESTO PARA UMA VIDA FELIZ
 
1.    – O MELHOR DO MUNDO SÃO AS CRIANÇAS.
 
2.   – VESTIR UM LARGO SORRISO AO ACORDAR.
3.   – PARA QUE O COLHER SEJA UM DIREITO, O SEMEAR SERÁ UM DEVER.
4.   – DEDICAR UM MOMENTO DE CADA DIA AO CONTACTO COM A NATUREZA.
5.   DEVEMOS RESPEITAR A VIDA EM TODAS AS SUAS FORMAS.
6.   – FAZER COM QUE CADA DIA TENHA UM ACONTECIMENTO ESPECIAL.
7.   – NÃO SOMOS DONOS DO MUNDO SOMOS APENAS UM DOS SEUS OCUPANTES E, COMO TAL, DEVEREMOS RESPEITAR TODOS OS OUTROS.
8.   – DEVEMOS DAR A MELHOR ATENÇÃO AOS AMIGOS RECEBENDO E ACARINHANDO O CALOR QUE NOS TRANSMITEM. SÓ ASSIM O NOSSO CORAÇÃO SE MANTERÁ SEMPRE ANIMADO POR BATIDAS QUE NOS DÃO VIDA.
9.   – CADA UM É LIVRE DE SEGUIR O SEU CAMINHO DESDE QUE ISSO NÃO IMPEÇA O CAMINHO DO OUTRO.
10. – CADA UM DE NÓS É UM SER ESPECIAL E ÚNICO: QUE SEJA ESTE O PRIMEIRO PENSAMENTO DE CADA DIA!
11. 
12.   
 
Os números 11 e 12, em aberto, indicavam que o Manifesto, aquele Manifesto estava em construção e incompleto ainda, portanto e que, quase de certeza, não se ficaria pelos 12 pontos. Foi essa a impressão com que fiquei.
 


Manuel João Croca

2 comentários:

Diogo Correia disse...

BRAVÍSSIMO AMIGO CROCA!!!

Gostei muito deste texto.

Aquele manifesto podia muito bem ser a restruturação dos 10 mandamentos biblicos, tornando-os os 10 mandamentos do sec. XXI para diante ehehehehheheheheh

Abraço
Diogo

MJC disse...

Viva Diogo, bom dia.

Até poderá ser mas, como ainda não está fechado, se tiveres alguma coisa a acrescentar "bota" aí.

Abraço.

Manuel João