OFERTA DE UM PEREGRINO QUE PASSOU POR
MIM
Sentado sob a árvore e absorto nos meus
pensamentos, fui resgatado à meditação pela voz irritada da funcionária
municipal de limpeza, «chiça! que a merda da árvore parece que caga folhas».
Procurando encontrar a razão para a
irritação da personagem, olhei na direcção da voz e percebi. Era Inverno, época
em que as árvores de folha caduca perdem a folhagem, e a funcionária de limpeza
pública tinha feito dois montes com as folhas caídas para as pôr no carro do
lixo, quando uma nova rajada de vento fez cair da árvore mais uma enorme
quantidade de folhas que pejaram o chão.
Aquela fora uma das causas apontadas
pela edilidade, a par de que as raízes danificariam os esgotos, para, há algum
tempo atrás, pretender abater a árvore, só não o tendo feito devido à
mobilização de muitos moradores (entre os quais eu me incluí) que se opuseram a
tal propósito, tendo mesmo organizado um abaixo-assinado em defesa da árvore.
Fiquei a observar as diligências da
funcionária. Estava frio e de vez em quando sopravam umas rajadas de vento.
Estava nisto, quando vejo aproximar-se
um homem que, num relance, tomei por um pedinte.
Aproximou-se e apesar do seu aspecto
descuidado, percebi que não era pedinte nenhum. Era até alguém com qualquer
coisa de especial.
As roupas eram bastante usadas e os
sapatos velhos e gastos. O cabelo e a barba compridos, empastados, justificavam
limpeza urgente e a intervenção de um barbeiro mas, algo no seu olhar indicava
que não se tratava de nenhum “desgraçado”. O seu olhar era determinado mas
polido e brilhante.
Cumprimentou-me, «bom-dia, pode dar-me
um cigarro?», eu correspondi, «bom-dia como está, concerteza».
A conversa começou assim e discorreu a
partir dali.
Perguntou-me porque observava com tanta
atenção o trabalho da mulher e eu contei-lhe a história da árvore e ele
perguntou, «gosta então de árvores?», «gosto. Muito.», respondi. Depois de dar
umas fumaças no cigarro esfarelou-o entre os dedos e atirou-o fora. Olhei para
ele interrogativamente. Apressou-se a responder «ah, eu não fumo pedi--lhe o
cigarro só para meter conversa». O meu olhar intensificou-se e ele percebeu que
a explicação era insuficiente. «Ao dirigir-me para aqui vi-o aí sentado,
sozinho, ao frio e com este vento… achei estranho mas, talvez por isso mesmo,
pareceu-me uma pessoa interessante e como ando à procura de situações
interessantes dirigi-me a si para conversar um pouco. Espero que não leve a
mal». Perguntei, «anda então à procura de situações interessantes, mas isso é
alguma profissão?» Riu-se, «a profissão agora é desempregado. Era professor de
filosofia, na situação de contratado, com os sucessivos cortes e remodelações fiquei
nesta situação. Vivo com os meus pais mas a situação começou a ficar
insustentável. Sempre a darem-me sugestões, para que emigrasse ou tentasse
outra coisa, tanto esforço para nada, blá-blá-blá…, enfim saturei-me e decidi
vir dar uma volta à procura das tais coisas interessantes, pensar na vida e no
mundo e tentar encontrar uma saída», falou encolhendo os ombros. «Quer tomar
alguma coisa?», que «só se for uma garrafa de água.»
Convidei-o a entrar no café do largo, e
pedi duas garrafas de água.
«Então e donde é que é, de onde é que vem?»,
«sou de Vila Real (de Trás-os-Montes). Decidi
vir para sul e primeiro apanhei boleia de um camionista até Leiria, depois um
outro trouxe-me até S. João da Talha, passei uns tempos em Lisboa e decidi continuar
para sul. Apanhei o barco para o Barreiro e, durante a viagem, ouvi um grupo de
jovens a falar desta terra e de uma Feira Medieval que iria decorrer, achei
interessante e perguntei se essa terra era longe. Responderam que não e que se quisesse
até me davam boleia, aceitei e cá estou eu. Sei que Feira começa hoje. Passei
pelo recinto e parece-me ser uma coisa com alguma dimensão. E parece
interessante, estou no sítio certo.»
O personagem era jovem – deveria andar
na casa dos trinta e poucos – e confesso que gerava alguma empatia.
«Como é que se chama?», «Miguel, Miguel
Torgal, acho que foi uma forma de o meu pai prestar homenagem ao poeta e
escritor Miguel Torga de que era admirador, e você?», «eu sou José Paulo, e então,
tem encontrado muitas coisas interessantes nesta sua aventura?», tirou a
mochila que trazia a tiracolo, abriu-a e retirou de lá um livro. Percebi
tratar-se de “A Educação de Portugal” de Agostinho da Silva, facto que me fez
aumentar o interesse pelo personagem. «Grande homem», comentei. «Sem dúvida.
Homem fascinante e cheio de sabedoria. Põe-nos a pensar, faz-nos pensar. É uma
boa companhia.» Sorri e informei que infelizmente estava com pressa e tinha de
me ir embora, talvez nos encontrássemos na Feira Medieval. «Tudo bem, se nos
encontrarmos talvez possamos continuar a conversa mas, já agora e respondendo à
sua pergunta, tenho deambulado, observado, lido e reflectido sobre vários assuntos
e gostava de lhe oferecer uma coisa.» Retirou da mochila um papel dobrado em
quatro e estendeu-mo, «está aí a súmula do que retive do que li, ouvi, vivi e
observei desde que iniciei esta aventura. Veja e, se depois nos voltarmos a
encontrar, talvez possamos falar sobre isso.» Agradeci e, já de saída, «foi um
prazer, talvez nos encontremos mais logo», meti o papel no bolso e acelerei
direito a casa.
Confesso que estava bastante curioso por
desvendar o que o papel continha mas decidi que só o faria depois de despachar
o que tinha para fazer (tratar do jantar), pois queria ver o que fosse com
calma. Depois de tratar do que tinha de ser tratado, sentei-me no sofá e
desdobrei o papel. Tinha escrito, numa letra equilibrada e elegante, aquilo que
me pareceu um conjunto de princípios filosófico-orientadores. Eis o que dizia:
MANIFESTO
PARA UMA VIDA FELIZ
1.
– O MELHOR DO
MUNDO SÃO AS CRIANÇAS.
2.
– VESTIR UM LARGO
SORRISO AO ACORDAR.
3.
– PARA QUE O
COLHER SEJA UM DIREITO, O SEMEAR SERÁ UM DEVER.
4.
– DEDICAR UM
MOMENTO DE CADA DIA AO CONTACTO COM A NATUREZA.
5.
– DEVEMOS RESPEITAR A VIDA EM TODAS AS SUAS FORMAS.
6.
– FAZER COM QUE
CADA DIA TENHA UM ACONTECIMENTO ESPECIAL.
7.
– NÃO SOMOS DONOS
DO MUNDO SOMOS APENAS UM DOS SEUS OCUPANTES E, COMO TAL, DEVEREMOS RESPEITAR
TODOS OS OUTROS.
8.
– DEVEMOS DAR A
MELHOR ATENÇÃO AOS AMIGOS RECEBENDO E ACARINHANDO O CALOR QUE NOS TRANSMITEM.
SÓ ASSIM O NOSSO CORAÇÃO SE MANTERÁ SEMPRE ANIMADO POR BATIDAS QUE NOS DÃO
VIDA.
9.
– CADA UM É LIVRE
DE SEGUIR O SEU CAMINHO DESDE QUE ISSO NÃO IMPEÇA O CAMINHO DO OUTRO.
10. – CADA UM DE NÓS É UM SER ESPECIAL E ÚNICO: QUE SEJA
ESTE O PRIMEIRO PENSAMENTO DE CADA DIA!
11. –
12. –
Os números 11 e 12, em aberto, indicavam que o Manifesto, aquele
Manifesto estava em construção e incompleto ainda, portanto e que, quase de
certeza, não se ficaria pelos 12 pontos. Foi essa a impressão com que fiquei.
Manuel João Croca
2 comentários:
BRAVÍSSIMO AMIGO CROCA!!!
Gostei muito deste texto.
Aquele manifesto podia muito bem ser a restruturação dos 10 mandamentos biblicos, tornando-os os 10 mandamentos do sec. XXI para diante ehehehehheheheheh
Abraço
Diogo
Viva Diogo, bom dia.
Até poderá ser mas, como ainda não está fechado, se tiveres alguma coisa a acrescentar "bota" aí.
Abraço.
Manuel João
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