sábado, 25 de janeiro de 2014

Desmancha Prazeres


Vendas Novas, 21 JAN 2014

Indignem-se, dizem as correntes de mensagens que nos enchem a caixa do correio. E a gente faz forward, comodamente sentados. A superficialidade dum tempo sem tempo, a indignação digital, o carpir como quem mia na esperança de receber um carapau, a solidão disfarçada na ilusão de que o mundo está à escuta do que dizemos, falar para não estar calado, exigir dos outros a santidade banal e pós-moderna de enfeitar o mercado das palavras...

Vamos apodrecendo na vida adiada que nem a esperança concede. Esperamos sentados. Indignamo-nos sem consequência. Toda a nossa raiva se esgota quando agredimos o teclado e premimos o rato como se o estrangulássemos.

Olho as campas rasas do imenso cemitério do facebook e só me ocorre perguntar: há por aí algum corpo que ainda tenha sinais de vida?

Vou até à janela. Uma velhota tenta atravessar a rua, arrastando um cão pela trela. Um automobilista apressado buzina-lhe ferozmente e atira-lhe duas bocas foleiras. Deixo o mundo como está e volto indignado para o teclado.


Abdul Cadre


7 comentários:

Amélia Oliveira disse...

Boa Noite.
Há coincidências engraçadas: tinha acabado de escrever um pequeno texto acerca de uma personagem que acabara de descobrir que não existia porque tudo o que era apenas o era dentro de um computador portátil: aí amava, odiava, gritava, sussurrava... e preparava-me para encerrar o computador quando resolvi ler o seu texto. E parece-me evidente que também ele aponta para a nossa quase inexistência fora dos monitores, dos ratos e dos teclados. Será que nos tornámos dependentes, ou apenas comodistas? Ou será apenas a solidão que nos atira para este mundo virtual, essa 'solidão disfarçada de ilusão de que o mundo está à escuta(...)' que refere?
Vai dar-me que pensar este 'Desmancha Prazeres'... e que bom quando o que lemos nos faz reflectir!
Obrigada.
Amélia Oliveira

A.Tapadinhas disse...

É mais fácil ficarmos indignados com a chacina dos golfinhos no Japão...

...do que ajudar a velhota a atravessar a rua.

Abraço,
António

Amélia Oliveira disse...

António,
Concordo. E será que é assim porque a indignação com a chacina dos golfinhos, se bem que mais do que legítima, não nos obriga a agir? 'É muito longe, não há nada que possamos fazer...' Já o ajudar a velhota a atravessar a rua...
Ou será para nos convencermos que somos tão grandes, que só nos preocupamos com as grandes causas? Causas à medida do nosso pretenso gigantismo? E aí as redes sociais saciam-nos: há frases (descontextualizadas, claro, porque não há espaço para muito) para todos os gostos... de grandes poetas, filósofos, pensadores, que parecem ter sido escritas propositadamente para nós, porque nos encaixam na perfeição ... se calhar, em momentos de pouca racionalidade, até se pensa que as palavras deste ou daquele, já morto e enterrado há séculos, só pode ter sido escrita a pensar em nós...
Mas que tempos são estes que estamos a viver??

Abraço,
Amélia

A.Tapadinhas disse...

Amélia: “Chega sempre a hora em que não basta apenas protestar: após a filosofia, a acção é indispensável.”
―Victor Hugo

Juntar as duas coisas é o mais difícil: o filósofo não actua e quem age não pensa!

Beijo,
António

Amélia Oliveira disse...

António
Essa resposta merece um 'Gosto' :)

Beijo,
Amélia

estudo geral disse...

O alerta é importante e justificado embora considere que, apesar de tudo, ainda é mais pessimista do que a realidade nos transmite.
Ainda nem todos se renderam.

Abraços.

Manuel João Croca

Abdul Cadre disse...

Todos somos livres de agir ou não agir, todavia prisioneiros insofismáveis das consequências do acto ou da omissão.
De nos rendermos, não podemos renegar os efeitos. De não nos rendermos, também não.
Se agimos, transformamos o mundo e distinguimo-nos das pedras e das areias; se não agimos, é o mundo que nos transforma e fá-lo no sentido de nos tornar indistintos.
Nos anos sessenta, Bob Dylan avisava-nos para as terríveis chuvas que nos ameaçavam. Isso assustava, mas, bem vistas as coisas, não há nada como uma grande tormenta para acentuar a nossa humanidade, para nos dar força, para resistirmos. Para não nos rendermos.
Mas este não é um tempo de fortes chuvas (no sentido que lhe dá Dylan). É o tempo da apatia usada na tentativa de passar por entre os pingos da chuva, do conformismo, da rendição do sonho por medo dos pesadelos. Mas é evidente que haverá os que garantem que se não rendem e que talvez não se rendam mesmo. Morrerão de pé, como as árvores, mas não sei se alguém tirará proveito da matéria lenhosa…
A partir do momento em que os senhores do dinheiro e do poder – do verdadeiro poder – perceberam que não precisavam da democracia para nada, começou a contagem decrescente deste tempo que apodrece, o que não é uma coisa má, antes pelo contrário. O problema aqui é que quer os que se rendem, quer os que não se rendem, têm as palavras presas na garganta e estão incapazes de cantar o hino e plantar as flores do tempo inevitável que virá. A contagem crescente desse novo tempo começará precisamente no dia em que o último banqueiro, abrindo a barriga da última galinha dos ovos de oiro, exclamar em pânico: Ai, que não tem ovo!