domingo, 19 de janeiro de 2014

 


 
 
 
 
 
Caro Zé Paulo, a Feira Medieval da sua terra é muito animada, proporcionou-me imenso prazer a sua descoberta e os novos conhecimentos que travei. Considero-me um indivíduo com sorte e agradecido pelas pessoas que a Vida vem colocando no meu caminho.
Como prometido, cá lhe envio a primeira carta-relato deste discorrer que decidi baptizar como “Em Busca da Felicidade”.
Conto ir dando notícias com regularidade, sempre é uma forma de ir mantendo o registo dos dias.

 Sines
“EM BUSCA DA FELICIDADE” – Relato 1
Quando se decidiram pelo regresso, o condutor perguntou ao resto do grupo se deveria ir pela auto-estrada, se pelo litoral. Por unanimidade optaram pelo litoral e por aí fomos. Um automóvel, sete jovens e uma viagem de regresso ao Algarve feita pelo litoral num clima de boa disposição.
Depois de Grândola virámos para Sines, terra do grande navegador Vasco da Gama que comandou a frota que descobriu o caminho marítimo para a Índia, onde chegou a ser vice-rei nos últimos anos da sua vida, facto que desconhecia mas que a Carina, professora de Geografia de profissão e “eleita” guia turística para responder às imensas coisas que desconhecia e me despertavam curiosidade, fez questão de informar. Soube também que era a terra do grande poeta Al Berto, que ali se realizava, há já vários anos, o Festival Músicas do Mundo, da existência da refinaria e das enormes potencialidades do seu porto de mar.
Em Sines parámos para beber um café.
O Zé Rui disse que eu era convidado e não pagaria nada já que o cachet do espectáculo em Alhos Vedros tinha sido bom. Agradeci e senti-me aliviado já que viajava usando as magras economias que conseguira poupar e não sabia ainda quando terminariam estas minhas deambulações.
Depois São Torpes, onde se ergueu, provavelmente, a primeira basílica consignada ao culto cristão da Europa em homenagem ao mártir cristão São Torpes de Pisa, e a seguir Porto Covo com a sua linda praça quadrangular e a famosa Ilha do Pessegueiro tornada famosa pela dupla Carlos Tê/Rui Veloso.
Seguiu-se Vila Nova de Milfontes onde o Rio Mira, vindo da Serra do Caldeirão e depois de escorregar por entre serras e outeiros, desfalece no Atlântico, e de onde descolou o avião para a primeira travessia aérea Portugal-Macau a cargo de Brito Paes e Sarmento Beires.

V.N.Milfontes
 
Em Cabo Sardão parámos, ali quase à sombra do farol, para almoçar. Comemos feijoada de búzios, não sem antes degustarmos umas postas de moreia frita, especialidades locais que proporcionaram delícia geral. Seguimos depois para Zambujeira do Mar, onde se realiza o maior dos festivais de música do Verão, Odeceixe, Aljezur, Vila do Bispo que, por ser a “capital dos percebes” justificar paragem para provar alguns, acompanhados de uma cervejinha bem gelada depois de “esmoermos” um pouco passeando pela praia do Castelo.
Seguimos para Sagres já a tarde ia adiantada.
Sagres e a sua fortaleza onde, no longínquo século XV, o Infante Dom Henrique construiu a escola náutica, erguida num imponente aguilhão de rocha que se impõe ao mar entrando por ele adentro.



Promontório de Sagres
 
Em atenção a mim, já que todos os outros conheciam sobejamente o lugar, fomos visitar a fortaleza e caminhámos conversando ao longo do promontório.
À nossa frente, estendendo-se a perder de vista até a água tocar o céu, o oceano imenso, a brisa marinha a envolver-nos e qualquer coisa de indefinível a crescer cá dentro. A vocação marinheira tamborilando e a consciência de automutilação no abandono desse desígnio. Entregámo-nos a uma Europa refém de interesses que não nos consideram, aliciando-nos o contento com algumas migalhas que caem da mesa do banquete onde não cabemos como comensais. “Da minha língua vê-se o mar” sussurra-nos o grande Vergílio Ferreira num rebate a que não deixemos morrer em nós o travo de epopeia que realizámos nos caminhos do mar. Mas interesses obscuros pesam mais do que o aproveitar das oportunidades que se nos abrem para a consumação da nossa ancestral vocação: crescer como povo ao encontro do outro, alargando pelo conhecimento e a troca a concepção de mundo ao invés de rastejar numa Europa que não nos considera nem respeita.
Sentia-me emocionado e, solicitando a atenção do grupo, recorri ao livro do meu quase homónimo Miguel Torga que trazia na mochila, li:
 
 SAGRES
 
Vinha de longe o mar ... / Vinha de longe, dos confins do medo... /
Mas vinha azul e brando a murmurar / Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.
 
E a terra ouvia, de perfil agudo, / A confidencial revelação /
Que iluminava tudo/ Que fora bruma na imaginação.
 
Era o resto do mundo que faltava /(Porque faltava mundo !)/
E o agudo perfil mais se aguçava, / E o mar jurava cada vez mais fundo.
 
Sagres sagrou então a descoberta/Por descobrir:/
As duas margens da certeza incerta/Teriam de se unir!
                 MIGUEL TORGA
 
Todos aplaudiram e o Pedro disse, «parecias um oráculo».
A Carina, mais uma vez assumindo o papel de guia, foi-me explicando que toda aquela costa que bordejáramos fazia parte do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. A Costa Vicentina escarpada, bela e rochosa é parte do “rosto”, como Fernando Pessoa lhe chamou na sua/nossa “Mensagem”, com que a Europa fita o Mundo, e passou a declamar de cor:
 
A Europa, posta nos cotovelos: / De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
                       E toldam-lhe românticos cabelos / Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;/ O direito é em ângulo disposto.
                        Aquele diz Itália onde é pousado;/ Este diz Inglaterra onde, afastado,
                       A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
 
Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
Carina declamava muito bem e todos ouviram com um ar entre o atento e o extasiado.
Apesar de nos conhecermos há apenas dois dias, sentia-me cada vez mais ligado e como se pertencesse àquele grupo já há muito tempo. Quando regressámos ao carro para o trecho final da viagem era exactamente nisto que pensava.
Como é que há pessoas que nos fazem sentir integrados e ligados, a pertencer a algo maior, muito maior, que nós próprios e outras só servem para exaltar em nós a consciência de que, por fim, estamos e somos sós, que nos fazem sentir sós? Será por responsabilidade do que somos e como somos, ou daquilo que os outros são e como são? Será pelas circunstâncias? 
E quem cria as circunstâncias?
Sentia que havia da parte deles uma manifesta vontade de me integrarem e eu, sensibilizado com a atitude, atentava apenas na arquitectura da aproximação. Não havia expectativas apenas vontade de não defraudar quem tão bem me acolhia. A vontade de integração era recíproca o que facilitava muito as coisas.
A noite, entretanto, começara a instalar-se.
De Sagres a Lagos é perto, umas escassas dezenas de quilómetros, mas chegámos já a noite se tinha fechado.
Senti-me então agitado.
Durante toda a viagem concentrado na atenção ao percurso, para mim autêntica revelação pois nunca por ali andara, e nas conversas, na tentativa de compreender e conhecer o mais possível de cada um e da dinâmica do grupo, não pensara no assunto mas agora impunha-se que pensasse: era de noite, estava em Lagos - cidade que não conhecia e onde nunca estivera – e não tinha onde dormir. Decerto haveria pensões mas seriam caras ou baratas? Precisava resolver aquele assunto urgentemente.
Como que por transmissão de pensamento, o Pedro perguntou-me se tinha onde ficar. Respondi que não e o convite surgiu de forma espontânea e natural, «olha Miguel, eu e o Mário vivemos num pequeno apartamento, um pouco apertado mas, se te quiseres ajeitar no sofá, podes ficar lá em casa.» Aceitei sem pensar muito e o problema ficou ultrapassado. Curiosamente aceitei o convite sem qualquer constrangimento, não pude deixar de reflectir.
Fizeram-se as despedidas - aproveito aqui para apresentar os outros dois elementos do grupo: o Tó Zé e a Mariana, que viviam juntos -, com um «até amanhã no “Carta de Marear”», e cada um seguiu para as suas casas.
Manuel João Croca

(As fotos foram retiradas da Internet.)







2 comentários:

Amélia Oliveira disse...

MJC
Ainda bem que o teu peregrino não falhou e te deu conta da sua viagem rumo ao Sul. E é tão bonito o trajecto que escolheram... Parece-me em boa companhia e estou a gostar bastante de ler as suas aventuras. Cá fico a aguardar as próximas, com muita curiosidade...
Abraços e bom domingo.
Amélia

MJC disse...

Olá Amélia, boa noite.

A acompanhar a deambulação física está o Miguel Torgal a realizar também uma viagem interior e a reflectir e a interrogar-se. Confronta-se. Também como tu, espero que ele não páre e continue a dar notícias. Vamos lá a ver se não esperamos em vão.

Beijinho.

Manuel João Croca